O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Friday, April 21, 2006

CASIMIRO DE BRITO

De canto em canto
vou caindo
no charco do silêncio.




DO POEMA

O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —
o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.



A PAZ

Se eu te pedisse a paz, o que me darias
pequeno insecto da memória de quem sou
ninho e alimento? Se eu te pedisse a paz,
a pedra do silêncio cobrindo-me de pó,
a voz limpa dos frutos, o que me darias
respiração pausada de outro corpo
sob o meu corpo?
Perdoa-me ser tão só, e falar-te ainda
do meu exílio. Perdoa-me se não te peço
a paz. Apenas pergunto: o que me darias
em troca se ta pedisse? O sol? A sabedoria?
Um cavalo de olhos verdes? Um campo de batalha
para nele gravar o teu nome junto ao meu?
Ou apenas uma faca de fogo, intranquila,
no centro do coração?

Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,
o teu corpo de cinza. Falo de mim,
entrego-te o meu destino. E a morte vivo
só de perguntar-te: o que me darias
se te pedisse a paz
e soubesses de como a quero construída
com as matérias vivas da liberdade?



Amo-te porque não me amo
inteiramente. O que me falta
é infinito
mas tu és do bem que me falta
o enigma onde se condensam
a terra e o sol o ar as águas
invioladas
e tenho a boca cheia
de música ondulação
do teu silêncio.



Entraste na casa do meu corpo,
desarrumaste as salas todas
e já não sei quem sou, onde estou.
O amor sabe. O amor é um pássaro cego
que nunca se perde no seu voo.



Eu não sei o que faço aqui
sei que faço alguma coisa
pequenas coisas sem importância
às vezes aborreço-me não é grave
fico apenas um pouco mais triste
depois levanto a cabeça
os ombros vacilam
transporto uma loba mas não sei até quando
uma loba que vai deixando o pelo
na casa do poema na cave acumulada
por um sábio que não sabe nada
nem cuidar de si nem cuidar
dos homens —
aparentemente foi tudo morrendo
neste reino de pequenos casamentos
de conveniência: ficaram
a insânia sem garganta e figuras de musgo
que não conhecem a separação entre o ser
e as nuvens
as nuvens que envolvem
os caminhos do corpo
as pegadas de um vírus que não cessa de
cantar o pó, tão fácil
de soprar. Chove. A chuva
pede que me cale.


CASIMIRO DE BRITO (n.1938)
Quadros: Catherine de Saugy

Thursday, April 13, 2006

TAGORE - O poder da palavra

O mistério da vida é tão grande como a sombra na noite.
A ilusão da sabedoria é como a névoa do amanhecer.
Lemos mal o mundo, e dizemos logo que nos engana.




Se me é negado o amor, por que, então, amanhece;
por que sussurra o vento do sul entre as folhas recém nascidas?
Se me é negado o amor, por que, então,
A noite entristece com nostálgico silêncio as estrelas?
E por que este desatinado coração continua,
Esperançado e louco, olhando o mar infinito?



Essa que ficou sempre na
profundidade do meu ser, no crepúsculo de
vislumbres e percepções momentâneas; essa
que jamais retirou os seus véus na luz da
manhã, essa irá ser a minha última
oferenda a ti, meu Deus, envolta na minha canção final.

As palavras cortejam-na, mas não conseguiram vencê-la, e a persuasão inutilmente estendeu para ela os seus braços ansiosos.

Vaguei de país em país, conservando-a
no íntimo do meu coração, e ao redor
dela a minha vida ergueu-se e caiu,
ao mesmo tempo forte e frágil.

Embora habite sozinha e afastada, ela sempre reinou sobre todos os meus pensamentos e acções, sobre todos os meus sonos e sonhos.

Muitos bateram à minha porta,
perguntaram por ela, e foram-se embora,
sem esperança.

Ninguém no mundo conseguiu vê-la face a face, e ela continua na sua solidão,
à espera do teu reconhecimento.



SE NÃO FALAS

Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.
A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.
Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.



FLOR DE LOTUS

No dia em que a flor de lótus desabrochou
A minha mente vagava, e eu não a percebi.
Minha cesta estava vazia e a flor ficou esquecida.
Somente agora e novamente, uma tristeza caiu sobre mim.
Acordei do meu sonho sentindo o doce rastro
De um perfume no vento sul.
Essa vaga doçura fez o meu coração doer de saudade.
Pareceu-me ser o sopro ardente no verão, procurando completar-se.
Eu não sabia então que a flor estava tão perto de mim
Que ela era minha, e que essa perfeita doçura
Tinha desabrochado no fundo do meu coração.
Verdades
Roubo do hoje a força
Fazendo nascer o amanhã.
Da janela acompanho com olhar
As nuvens do céu.
De novo a sombra sinistra
Tolda tristemente meus sonhos.
Tua imagem me acompanha
Por todos os lugares por onde ando.
E em todos os momentos
É a tua presença que espanta
As brumas do desconhecido.
Não faço perguntas.
Tenho medo das respostas que já sei.
Liberta do invólucro físico
Devolverei a matéria ao pó de que fora feito.
Vivi meus três caminhos na terra.
Purgatório. Inferno. Céu.
Tudo de acordo com meus projetos,
Minhas atitudes,
Procurando não cair nos mesmos erros.
Agora — vago e espero
Entre tropeços e flagelos
O ressurgir da verdade.



A LUA NOVA

Como discutem e como gritam!
Como desconfiam e se desesperam!
Nunca param de brigar!
Que tua vida se ponha entre eles, inalterável e pura
Como uma língua de luz
E lhes imponha silêncio com sua formosura.
Que cruéis os torna a cobiça e o ciúme! Como
Violências disfarçadas sedentas de sangue são suas palavras.
Ponha-se entre seus corações irados e que
Teu olhar sublime caia sobre eles como cai a indulgente
Paz do anoitecer sobre a batalha do dia.
Deixe que olhem tua face
E que assim compreendam o sentido de todas as coisas.
Que te amem, e assim amem um ao outro.
Vem ocupar teu lugar nos braços do Eterno.
Abre e levanta teu coração ao nascer do sol, como uma nova flor.
E quando o sol se pôr, inclina tua cabeça e reze
Em silêncio a oração da tarde.
Esperançado e louco, olhando o mar infinito?
Aforismos
Como as gaivotas e as ondas se encontram, nos encontramos e nos unimos.
Vão-se as gaivotas voando, vão pairando sobre as ondas; e nós também vamos.
Se de noite choras pelo sol, não verás as estrelas.
A luz do sol me saúda sorrindo.
A chuva, sua irmã triste, me fala ao coração.
Se faço sombra em meu caminho, é porque há uma lâmpada em mim que ainda não foi acesa.
Teu sol sorri nos dias de inverno de meu coração, e não duvido jamais das flores de tua primavera.
Quando o dia cai, a noite o beija e lhe diz ao ouvido:
'Sou tua mãe a morte, e te hei de dar nova vida'.
O mistério da vida é tão grande como a sombra na noite.
A ilusão da sabedoria é como a névoa do amanhecer.
Lemos mal o mundo, e dizemos logo que nos engana.



Rabindranath TAGORE (1861-1941)
(Premio NOBEL de Literatura 1913)

Sunday, April 09, 2006

SYLVIA PLATH


Poetisa americana, de grande inteligência e sensibilidade, casada com o poeta Ted Hughes. Tentou suicidar-se três vezes, tendo conseguido à terceira, no seio da depressão que se seguiu à separação do marido.
Tinha dois filhos pequenos e apenas trinta e um anos. Deixou uma obra pequena mas de grande valor literário. Após a sua morte. Ted Hughes juntou os seus poemas numa antologia intitulada “Collected Poems” que ganhou o Prémio Pullitzer, em 1982.




A LUA E O TEIXO - Esta é a luz do espírito, fria e planetária...


Esta é a luz do espírito, fria e planetária.
As árvores do espírito são negras. A luz é azul.
As ervas descarregam o seu pesar a meus pés como se eu fosse Deus,
picando-me os tornozelos e sussurrando a sua humildade.
Destiladas e fumegantes neblinas povoam este lugar
que uma fila de lápides separa da minha casa.
Só não vejo para onde ir.A lua não é uma saída.
É um rosto de pleno direito, branco como o nó dos nossos dedos
e terrivelmente perturbado.
Arrasta o mar atrás de si como um negro crime;
está mudo com os lábios em O devido a um total desespero.
Vivo aqui. Por duas vezes, ao domingo, os sinos perturbam o céu:
oito línguas enormes confirmando a Ressurreição.
Por fim, fazem soar os seus nomes solenemente.
O teixo aponta para o alto. Tem uma forma gótica.
Os olhos seguem-no e encontram a lua.
A lua é minha mãe. Não é tão doce como Maria.
As suas vestes azuis soltam pequenos morcegos e mochos.
Como gostaria de acreditar na ternura...
O rosto da efígie, suavizado pelas velas,
é, em particular, para mim que desvia os olhos ternos.
Caí de muito longe.
As nuvens florescem, azuis e místicas sobre o rosto das estrelas.
No interior da igreja, os santos serão todos azuis,
pairando com os seus pés frágeis sobre os bancos frios,
as mãos e os rostos rígidos de santidade.
A lua nada disto vê. É calva e selvagem.
E a mensagem do teixo é negra: negra e silenciosa.




Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)

Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para
a insanidade.

(Acho que te criei no interior de minha mente)

Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo
do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com
estrondo

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior de minha mente)



OS MANEQUINS DE MUNIQUE

A perfeição é horrível, ela não pode ter filhos.
Fria como o hálito da neve, ela tapa o útero

Onde os teixos inflam como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida.

Desprendendo suas luas, mês após mês,
sem nenhum objetivo.

O jorro de sangue é o jorro do amor,
O sacrifício absoluto.

Quer dizer: mais nenhum ídolo, só eu
Eu e você.

Assim, com sua beleza sulfúrica, com seus
sorrisos

Esses manequins se inclinam esta noite
Em Munique, necrotério entre Roma e Paris,

Nus e carecas em seus casacos de pele,
Pirulitos de laranja com hastes de prata

Insuportáveis, sem cérebro.
A neve pinga seus pedaços de escuridão.

Ninguém por perto. Nos hotéis
Mãos vão abrir portas e deixar

Sapatos no chão para uma mão de graxa
Onde dedos largos vão entrar amanhã.

Ah, essas domésticas janelas,
As rendinhas de bebê, as folhas verdes de confeito,

Os alemães dormindo, espessos, no seu insondável desprezo.
E nos ganchos, os telefones pretos

Cintilando
Cintilando e digerindo

A mudez. A neve não tem voz.


SYLVIA PLATH (1932-1963)

Wednesday, March 08, 2006

S O Y A



A COR DA TUA FACE

A minha almofadinha tem milhares de cores
Aquela por baixo do peito multifacetada
Que ao rodopiar funde boas e más dores
Num todo cooperante, mulher equilibrada

Cada qual um espaço na almofadinha por colorir
A oportunidade do desconhecido fazer sentir
A tua cor já neutralizada não pelo que me fizeste
Mas pelo teu pobre pincel e face insignificante

O tempo conta, e começa na verdade
Para aqueles de individual consciência saudável
Vi as agulhas perfurarem em clara liberdade
Trazendo mágoa e rancor à almofadinha moldável

Quando a lágrimas é comprida a sorte
Vão as agulhas, factos ou lembranças integrais
Fica a impressão profunda que exclui a tua face
Só a sabedoria e análises imparciais

Processo irreversivelmente dogmático
A inculta e fria marca na almofadinha
Impedimento à cor e ao formato
Sentimento superior à tua falta de tinta


Soya
2006



A TERRA E O MAR

Que sinto
Mornice, meiguice
Sol fresquinho, vento quentinho

Da segurança nasce o erro
A vontade livre pela descontracção
E assim se concretiza o apelo
Feito pelo navegante muito sabido então

Sinto o amado para lá da distância que separa a légua
Sete fogos extintos por uma só lágrima
Com os dedos a bailar nas cordas criativas longe da terra
Medida ceifada na escorregadia invisibilidade

Morrer aos pouquinhos
Dia sim, dia não
Devagar devagarzinho
Sem contrariar o coração

Voaram as respostas na terra
Do pior, ele a bailar contra mim e para todo o mar
Foram refutadas por questões nas minhas mãos
Os lábios revelavam mais nada a achar

Pensar não faz mal?
Toca de cima para baixo
Mas até que ponto trás isso mal?
Quando lá chego
Fico com mais flores no meu quintal

No caminho de pedra para beijar a felicidade
Dividiria o trevo de quatro folhas, em dois meios de duas
Pontas separadas entre a terra e o mar já hoje
Medida irracional e doente de te ver longe

Sei que o desfeito
Está mais perto do perfeito
Com o meu e da Lua apoio
Só eu influencio meu peito

De amores platónicos já me basta
E de todas as frases doentes
Passo a seguir a rebaixante vontade descontente
De, neste momento, dizer adeus para sempre



GOTAS DE CHUVA

Olho para a janela e está a chover, olho para dentro e está tudo igualmente molhado
Esquecer as regras, usar a altura de começar a aperceber, através de uma janela

Estou a vê-las cair, escorregar, a descer naturalmente
Os segundos passam e o tempo passa
E lá vão elas a esgotar o tempo da sua existência

Nascem algures no acaso
Pouco controlam o momento da sua acção
Até que desaparecem
Quando já outras nascem e outras vão a meio trajecto

Enquanto o momento de cada uma passa vão ziguezagueando
Ora para a esquerda, ora para a direita
Ora para o cume, ora para o vale
Ora para o mar, ora para a terra
Ora para o seguro, ora para o inseguro
Ora para o preto, ora para o branco

Passadas vidas, as vidas vão encontrando das outras os refugos
Que se vão aglutinando em novos caminhos
E influenciando suas pegadas em cada novo segundo

E enquanto isto, já tudo se passou
Passou a chuva lá de fora e também a cá de dentro
Agora a visão foi para outro universo, outro espaço
Mas há-de voltar, e eu hei de sentir
Até que eu também acabe as minhas curvas

Soya
2004



OS TRATANTES DA VERDADE

Os olhos reflectem um mundo em volta
Imagens hereges em vidros aos estilhaços
A dispersão numa primeira respiração morta
Bocas grandes, tratantes do humano feito palhaço

O lamento da nossa fé no acaso
Contra o silêncio e a escuridão
O indizível conhecimento ao abandono
Reflexão aterrorizada nas provas em vão

O teatro cria a vertigem do irreal em real
Um vigilante esconderijo que nunca foi estanque
A vida infiltra-se e argumenta uma reacção natural
O impotente sonho de ser, tudo menos cooperante

A dor que desapetece quando desapetecida
As lágrimas que trazem um oceano em imensidão
Mar a dentro surge uma consciência tranquila
O toque saudável sem desejo de exposição

Um sorriso manchado em lágrimas
Vontade na tolerância de beijar as feridas
Ou fechar dentro ou fora das intenções amigas
A sabedoria que ouve o acaso e escolhe as páginas


Soya (n.1989)
2006

Friday, March 03, 2006

ROBERTO JUARROZ - Poesia Vertical



A experiência poética de um pensador místico e visionário

TENSÃO INTERIOR
VERTICALIDADE
ALQUIMIA INTERIOR
INTEGRIDADE



Há pensamentos que deveriam culminar
num gesto da sua própria substância,
conciliações, mortes e até esquecimentos
que artificialmente devem ser detidos
numa paralisada iminência,
num embrião ou anteprojecto de gesto
imobilizado de súbito como um rígido boneco
no interior de uma parede de vidro.
E não se sabe se ali termina o homem,
nesse falso vazio transparente,
ou se o gesto necessário não se cumpre
porque em frente já não há ninguém.
O certo é que o mundo
não é mais que um montão de extremos incompletos,
de pontas frustradas
no escandaloso e simulado espaço
dos gestos que não existem.
E a morte não é outra coisa que a plenitude desse espaço,
a fusão desses gestos.



A iniciativa própria das coisas,
a sua ruptura com antigas servidões,
a razão inconclusa de ser coisas,
fazem com que de repente não o sejam.
Passam assim a existir num outro plano,
a articular os signos de uma linguagem
ou a firmar a presença de outro espaço,
a percorrer as formas do vivo,
não somente a reflecti-las,
a corrigir o seu sonho de ser coisas
e sonhar outro sonho,
como ser outra história da vida
ou outra história sagrada:
a de um deus que apoia o seu mutismo nas coisas.
Ou as coisas deixam às vezes de ser coisas
para aperfeiçoar por um instante
a inconsciência do mundo.



Há dias em que o ar não existe.
Mineiros da desolação,
respiramos então substâncias escondidas.
E a ponto de nos asfixiarmos,
vagamos com a boca aberta
e não acendemos nenhum fogo,
para não consumir o pouco oxigénio que nos resta
como um pedaço de pão do dia anterior.
Já não recordamos o nome da nossa rua,
nem a medida da nossa roupa,
nem o som da nossa voz,
nem a sensação do nosso corpo.
Porém de imediato,
como se também tivessem ficado sem ar,
esvaziam-se a um só tempo a memória e o esquecimento
e encontramos então
a mínima densidade possível,
as partículas sábias onde entram em contacto
o vazio e a vida.
E é ali, somente ali,
onde descobrimos a salvação pelo vazio.


ROBERTO JUARROZ, 1925-1995

Friday, February 10, 2006

ANTÓNIO RAMOS ROSA



GRITO CLARO

De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro




UMA VOZ NA PEDRA

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.




A MULHER FELIZ

Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
e os ventos empurraram-na. Está ali, na perfeição redonda
da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada.

É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
Que lentas são as folhas largas e as areias!
Que denso é este corpo, esta lua de argila!

Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
Crescem, crescem os músculos da mais íntima distância.





CORPO DE AROMA

Se foste corola ou barco,
mas quando?
minha irmã,
minha leve amante, minha árvore,
que o mundo levantava
na inocência absoluta
do instante.
Alta estavas no amplo e recolhida
como uma lâmpada,
alta estavas na varanda branca.
Se acaso ainda podes ser aroma
dos meus olhos,
corpo no corpo,
retiro e substância, linha alta
da delícia,
nada te pedirei na minha ânsia
de puro espaço,
de azul imediato,
de luz para o olvido e o deserto.


ANTÓNIO RAMOS ROSA(n. 1924)
Desenhos de António Ramos Rosa

Tuesday, September 20, 2005

Sophia de Mello Breyner Andresen


Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.


POESIA (1944)




EIS-ME

Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Livro Sexto (1962)



A PAZ SEM VENCEDOR E SEM VENCIDOS

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dual (1972)



ESTE É O TEMPO

Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam

Mar Novo (1958)



CHAMO-TE

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que não quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.



AUSÊNCIA

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua

Mar Novo (1958)


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN (1919-2004)

Halloween Store
BlogRating