O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Monday, September 06, 2004

Juan Ramón Jiménez, Mário de Sá-Carneiro, António Machado





A VIAGEM DEFINITIVA

Ir-me-ei embora. E ficarão os pássaros
Cantando.
E ficará o meu jardim com sua árvore verde
E o seu poço branco.

Todas as tardes o céu será azul e plácido,
E tocarão, corno esta tarde estão tocando,
Os sinos do companário.

Morrerão os que me amaram
E a aldeia se renovará todos os anos.
E longe do bulício distinto, surdo, raro
Do domingo acabado,
Da diligência das cinco, das sestas do banho,
No recanto secreto do meu jardim florido e caiado
Meu espírito de hoje errará nostálgico...
E ir-me-ei embora, e serei outro, sem lar, sem árvore

Verde, sem poço branco,
Sem céu azul e plácido...
E os pássaros ficarão cantando.


JUAN RAMÓN JIMÉNEZ (1881 – 1958)
(Prémio Nobel da Literatura 1965)

Tradução: Manuel Bandeira

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QUASE

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...


MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890 – 1916)

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PARÁBOLAS

VI

O Deus que todos levamos,
o Deus que todos fazemos,
o Deus que todos buscamos
e que nunca encontraremos:
três deuses e três pessoas
do único Deus verdadeiro.

VII

Diz a razão: Busquemos
a verdade.
E o coração: Vaidade.
A verdade já a temos.
A razão: Ai quem alcance
a verdade!
O coração. Vaidade.
A verdade é a esperança.
Diz a razão: Mas tu mentes.
E contesta o coração:
Quem mente és tu, ó razão,
que dizes o que não sentes.
A razão: Nunca podemos
entender-nos, coração.
O coração: Já veremos.


ANTÓNIO MACHADO (1875 -1939)
Tradução: Jorge de Sena


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