EUGENIO DE ANDRADE

Nem sempre o corpo se parece   
Nem sempre o corpo se parece com
um bosque, nem sempre o sol
atravessa o vidro,
ou um melro cante na neve.
Há um modo de olhar vindo
do deserto,
mirrado sopro de folhas,
de lábios, digo.
Litania
O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes; 
O triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece:
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece 
navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror; 
são a grande razão, a única razão. 
Abril  
Brinca a manhã feliz e descuidada, 
como só a manhã pode brincar, 
nas curvas longas desta estrada 
onde os ciganos passsam a cantar.  
Abril anda à solta nos pinhais 
coroado de rosas e de cio, 
e num salto brusco, sem deixar sinais, 
rasga o céu azul num assobio.  
Surge uma criança de olhos vegetais, 
carregados de espanto e de alegria, 
e atira pedras às curvas mais distantes 
- onde a voz dos ciganos se perdia. 
A boca
A boca,
onde o fogo 
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?) 
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.
Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser 
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
Que música escutas tão atentamente 
 
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim. 
À Beira de Água 
 
Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.
Rotina
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
EUGÉNIO DE ANDRADE (n.1923)
A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
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