O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Thursday, March 03, 2005

CECÍLIA MEIRELES


Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?




MORRO DO QUE HÁ NO MUNDO

Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.
Noções
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos
afligidos.
Descem pela água minhas naves
revestidas de espelhos.
Cada Lâmina arrisca um olhar, e investiga
o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à
correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas
que não se encontram.
Virei-me sobre minha própria experiência,
e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por
mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e
da beleza.
Ó meu Deus, isto é que é alma:
qualquer coisa que flutua por este
corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano
sobre a areia passiva e inúmera...



RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim
magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem
força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem
se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?



MOTIVO

Eu canto porque o instante
existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
- Não sei, não sei. Não sei se
fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é
tudo.
Tem sangue eterno e asa
ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.



FANTASMA

Para onde vais, assim calado,
de olhos hirtos, quieto e deitado,
as mãos imóveis de cada lado?
Tua longa barca desliza
por não sei que onda, límpida e lisa,
sem leme, sem vela, sem brisa...
Passas por mim na órbita imensa
de uma secreta indiferença,
que qualquer pergunta dispensa.
Desapareces do lado oposto
e, então, com súbito desgosto,
vejo que teu rosto é o meu rosto,
e que vais levando contigo,
pelo silêncioso perigo
dessa tua navegação,
minha voz na tua garganta,
e tanta cinza, tanta, tanta,
de mim, sobre o teu coração!



É PRECISO NÃO ESQUECER NADA

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo
aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a
nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso
rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz,
o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia
carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já
não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não
nos pertence.


CECÍLIA MEIRELES (1901-1964)

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