O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Sunday, August 01, 2004

CÂNTICO NEGRO



Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.


JOSÉ RÉGIO (1901-1969)



SEI TODAS AS HISTÓRIAS


Eu não sei muitas coisas, é verdade.
Apenas falo do que tenho visto.
E já vi:
que o berço do homem o embalam com histórias,
que os gritos de angústia do homem os afogam com histórias,
que os ossos do homem os enterram com histórias,
e que o medo do homem...
inventou todas as histórias.
Sei muito poucas coisas, é verdade,
mas adormeceram-me com todas as histórias...
e sei todas as histórias.


LÉON FELIPE (1884-1968)

Tradução: José Bento




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