OLGA SAVARY - Erótica, Incandescente e Líquida
Poetisa brasileira, de ascendência russa e portuguesa, Olga Savary emite a sua voz poética feminina através de uma extensa obra - tem vinte e três livros publicados, doze dos quais de poesia, reunidos ultimamente numa antologia intitulada "Repertório Selvagem". Marcadamente erótica, incandescente e líquida, a sua poesia extravasa criativamente os limites do estabelecido e rotulado, jorrando como onda, fogo ou magma...
TRANQUILIDADE NA TARDE
A Liene T. Eiten
Ah, derramar-me líquida sobre o mar
– ser onda indefinidamente –
esperar pela primeira estrela
e dela ser apenas
espelho.
QUERO APENAS
Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.
Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.
PEDIDO
A Manuel Bandeira
Quando eu estiver mais triste
mas triste de não ter jeito,
quando atormentados morcegos
– um no cérebro outro no peito –
me apunhalarem de asas
e me cobrirem de cinza,
vem ensaiando de leve
leve linguagem de flores.
Traze-me a cor arroxeada
daquela montanha – lembra?
que cantaste num poema.
Traze-me um pouco de mar
ensaiando-se em acalanto
na líquida ternura
que tanto já me embalou.
Meu velho poeta canta
um canto que me adormeça
nem que seja de mentira.
AUTO-DESPEDIDA
Há algo nas manhãs que não entendo agora
e a um grito de minhas pernas não atendo.
Ainda depois da noite, noite me espia
e sonho dúvidas enormes e imóveis
como a imobilidade das aranhas.
Tão pouco tempo- e tenho de deixar-me
e queria nunca ter de repartir-me.
Começa a raiva da saudade
que inventei vou ter de mim.
NOCTURNO
A Carlos Drummond de Andrade
E como o óleo
sobre a desconsolada cabeça
que não mais o suportasse
quisesse a solidão
que te decifra,
mãos em vôo além
da janela aberta
foram beber no ar
teu sortilégio, retrato
da lua e seu inventor
O LAGO EM CAIEIRAS
A Jack Dubbel
O lago ocultou um corpo livre
em abraço oco
como faca cortando espelhos.
Veio a vontade de ser esse lago
esse lago lago, que se permitia
magoar desejo há muito aprisionado.
Alguma coisa cresceu dentro de mim,
me fez virar o rosto para o outro lado.
Queria ser esse lago lago lago
– só isto –
debaixo do céu inutilmente azul
por ninguém se importar com ele
porque essa foi a mais selvagem,
a mais bela coisa que já vi.
FOGO
Dar-me toda este verão
urdideiros de rio, é ser
serpente de prata. Verão,
foi feita mais uma vítima
Sou um ser marcado, natureza.
A tarde crava em meu magma
o selo de sua secreta pata.
AR
É da liberdade destes ventos
que me faço.
Pássaro-meu corpo
(máquina de viver),
bebe o mel feroz do ar
nunca o sossego.
A ÁGUA
A água
se enovela pelas pernas
em fio de vigor espiralado
sobre o ventre e o alto das coxas.
O orgasmo é quem mede forças
sem ter ímpeto contra a água.
Quisera desabar sobre ti
como chuva forte.
As coisas são boas quando destroem
e se deixam destruir.
Só assim eu venho:
eco de profundas grutas,
nada leve
uma irrealidade
estar aqui.
Só sei amar assim
- e é assim que te lavro, deserto.
OLGA SAVARY (n.1933)
Ilustrações: Jurgen Gorg
0 Comments:
Post a Comment
<< Home