O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Friday, March 03, 2006

ROBERTO JUARROZ - Poesia Vertical



A experiência poética de um pensador místico e visionário

TENSÃO INTERIOR
VERTICALIDADE
ALQUIMIA INTERIOR
INTEGRIDADE



Há pensamentos que deveriam culminar
num gesto da sua própria substância,
conciliações, mortes e até esquecimentos
que artificialmente devem ser detidos
numa paralisada iminência,
num embrião ou anteprojecto de gesto
imobilizado de súbito como um rígido boneco
no interior de uma parede de vidro.
E não se sabe se ali termina o homem,
nesse falso vazio transparente,
ou se o gesto necessário não se cumpre
porque em frente já não há ninguém.
O certo é que o mundo
não é mais que um montão de extremos incompletos,
de pontas frustradas
no escandaloso e simulado espaço
dos gestos que não existem.
E a morte não é outra coisa que a plenitude desse espaço,
a fusão desses gestos.



A iniciativa própria das coisas,
a sua ruptura com antigas servidões,
a razão inconclusa de ser coisas,
fazem com que de repente não o sejam.
Passam assim a existir num outro plano,
a articular os signos de uma linguagem
ou a firmar a presença de outro espaço,
a percorrer as formas do vivo,
não somente a reflecti-las,
a corrigir o seu sonho de ser coisas
e sonhar outro sonho,
como ser outra história da vida
ou outra história sagrada:
a de um deus que apoia o seu mutismo nas coisas.
Ou as coisas deixam às vezes de ser coisas
para aperfeiçoar por um instante
a inconsciência do mundo.



Há dias em que o ar não existe.
Mineiros da desolação,
respiramos então substâncias escondidas.
E a ponto de nos asfixiarmos,
vagamos com a boca aberta
e não acendemos nenhum fogo,
para não consumir o pouco oxigénio que nos resta
como um pedaço de pão do dia anterior.
Já não recordamos o nome da nossa rua,
nem a medida da nossa roupa,
nem o som da nossa voz,
nem a sensação do nosso corpo.
Porém de imediato,
como se também tivessem ficado sem ar,
esvaziam-se a um só tempo a memória e o esquecimento
e encontramos então
a mínima densidade possível,
as partículas sábias onde entram em contacto
o vazio e a vida.
E é ali, somente ali,
onde descobrimos a salvação pelo vazio.


ROBERTO JUARROZ, 1925-1995

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