O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Wednesday, August 25, 2004

GRIPENBERG, CRAVEIRINHA, NATÁLIA e Mariana Inverno





VOA, MEU SONHO

Voa, meu sonho, voa sobre as planícies geladas,
Voa sobre as árvores mortas do Inverno,
Paira sobre a lonjura das belas noites de estrelas,
Nunca pares, continua a voar cada vez mais.
Arde, minha saudade, como uma chama eterna,
Arde na escuridão onde tudo se apagou e foi há muito.
Eterna é esta saudade, é a vida, é a ousadia,
E o fogo que salta sobre o véu de cinzas.

Compreende que para quem nada conseguiu,
E junto à praia nunca repousou,
Não há morte para alta fogueira que ardeu,
Não há medida para as terras azuis da sua saudade.
O meu coração vive de saudade em saudade.
Sempre para desconhecida costa se volta –
A saudade de um poeta não obedece às leis do espaço,
A terra de sonhos não tem fronteiras.

BERTEL GRIPENBERG (1878-1947)
Poeta finlandês
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QUERO SER TAMBOR

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

JOSÉ CRAVEIRINHA (1922-2003)
Poeta moçambicano
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SOBE O PANO

Onde se solta o estrangulado grito
Humaniza-se a vida e sobe o pano
Chegam aparições dóceis ao rito
Vindas do fosso mais fundo do humano.

Ilumina-se a cena e é sobretudo,
No palco, o real oculto no conflito.
É tragédia? É comédia? É, por engano,
O sequestro de um deus num barro aflito?

É o teatro: a magia que descobre
O rosto que a cara do homem cobre;
E reflectidos no teu espelho - o actor -

Os teus fantasmas levam-te para onde
O tempo puro que te corresponde
Entre horas ardidas está em flor.
NATÁLIA CORREIA (1923-1993)

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A RESISTENTE

A tudo eu resisto
- inquebrável estandarte
de mim mesma

À dor e ao clamor
da tua alma inquieta e só
eu resisto

Resisto à fome
de amor íntimo
que me consome
Aos dias pesados
aos sonhos confusopremonitórios
às garras do tempo alucinado
eu resisto

mesmo ao canto tentador
mesmo à doçura dos anjos
resisto
resisto

É a resistência quem me confirma
no que sou e no que não sou
a que me torna inquebrável
perdurável

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh!

Eternamente
aguardo um céu perdido
na sua memória me confirmo
resistente coleccionadora
das redondas, opalinas,
das lunares lágrimas ocultas
num canto escuro
do meu coração adiado.

MARIANA INVERNO (n.1950)

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