O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Wednesday, November 10, 2004

CECÍLIA MEIRELES

Nesse lugar nos encontraremos, Poeta...



Nesse lugar certamente nos encontraremos, Poeta.

Só pode haver um lugar
e o mesmo
para os que andaram na vida à procura
do que não se encontrava.
E será o nosso.

(Mas veremos de lá todas aquelas coisas já vistas?
Aquelas mesmas pessoas avistaremos,
nos seus antigos caminhos?
Teremos de ouvir para sempre o que diziam,
- oh, o movimento dos lábios que mentem,
a inesquecível pupila traiçoeira,
a lâmina que os malvados levam no pensamento...)

Teremos no outro mundo
a melancólica lembrança
do que nos vai matando neste?

Poeta, certamente nos encontraremos nesse lugar.

E que sejamos apenas a humilde, a humilhada luz,
que tanto defenderemos
desse vento, dessa noite, desse peso brutal do mundo em que vivemos.
Ai!



Escreverás meu nome com todas as letras,
Com todas as datas
- e não serei eu.

Repetirás o que me ouviste,
O que leste de mim, e mostrarás meu retrato
- e nada disso serei eu.

(...)

Somos uma difícil unidade
De muitos instantes mínimos
- isso seria eu.

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
Aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente
- Como me poderão encontrar?

Novos e antigos todos os dias,
Transparentes e opacos, segundo o giro da luz
- nós mesmos nos procuramos.

E por entre as circunstâncias fluímos,
Leves e livres como a cascata pelas pedras.
- Que metal nos poderia prender?





E assim passamos a tarde
conversando coisas banais
da superfície do mundo.

E estamos cheios de mistérios
que não comunicamos.

E assim morreremos, decerto.
E não dais por isso.



Para longe o que calo:
para o único momento
que se há-de ver imenso.

Para longe o que calo:
para o único momento
que se há de ver imenso.

Entre o que falo e calo,
há um leque em movimento.
Mas eu, a quem pertenço?



É preciso não esquecer nada;
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso esquecer é o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fossemos,
vigiados pelos nossos próprios olhos
severos connosco, pois o resto não nos pertence.




Dize:
O vento do meu espírito
soprou sobre a vida.
E tudo que era efémero
se desfez.
E ficaste só tu, que és eterno...



Não busques para lá.
O que é, és tu.
Está em ti.
Em tudo.
A gota esteve na nuvem.
Na seiva.
No sangue.
Na terra.
E no rio que se abriu no mar.
E no mar que se coalhou em mundo.
Tu tiveste um destino assim .
Procura o mar.
Dá-te à sede das praias
Dá-te à boca azul do céu
Mas foge de novo à terra.
Mas não toques nas estrelas.
Volve de novo a ti.
Retoma-te.


CECÍLIA MEIRELES (1901-1964)

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