O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Friday, October 08, 2004

ANA LUISA AMARAL


“É possível ser-se poeta mesmo dentro da banalização que é hoje o quotidiano.”
DN, 22-12-2001



CRIAÇÃO SONHADA

Tanto tempo a pensar
divino esforço
que adormecendo
deus sonhou consigo:

Sonhou braços e pernas
e cabeças,
sonhou paisagens
de mental pudor
conversas calmas
com o quase feito

E esforçado ficou
e exausto se quedou
ao ver-se assim traído
pela obra criada

Só em sonho



MINHA SENHORA DE QUÊ

Dona de quê
Se na paisagem onde se projectam
Pequenas asas deslumbrantes folhas
Nem eu me projectei

Se os versos apressados
Me nascem sempre urgentes:
Trabalhos de permeio refeições
Doendo a consciência inusitada

Dona de mim nem sou
Se sintaxes trocadas
O mais das vezes nem minha intenção
Se sentidos diversos ocultados
Nem do oculto nascem
(poética do Hades quem me dera!)

Dona de nada senhora nem
De mim: imitações de medo
Os meus infernos



PEQUENOS MOSAICOS

É agora - na pura ausência das coisas
e a madrugada por abrir. Um palco
a lua. Eu observada de fora da janela.

O terror de pensar: o pesadelo
de me sentir duas pela primeira vez
falado. é de amor este poema
e de visões: ondulantes cortinas
noutra que me é igual.

Porque no pesadelo e de repente
o futuro rasgou-se, as cortinas
soltaram-se. Na profecia
só ficaste tu.

E a tua falta mais que a tua
ausência em pequeno mosaico
se fechou. Entendo agora como uma cadeira
pode ser só esta cadeira porque
é tua.



ASSIM SE REVISITA O CORAÇÃO

Só mal tocando as cordas
Da memória
Consegue o coração ressuscitar

Porque era este lugar
que eu precisava agora
como em deserto até
ao infinito,
e de repente,
uma gravidez imensa,
um cacto verde e limpo

Porque os olhos conhecem
estes sons
de dar à luz o vento
e são-lhe amantes
de tangível luz

Só mal tangendo as cordas
da memória
como estas flores
se tingem de alegria

Porque era neste azul
que eu me queria
como a rocha transpira
e se resolve
em mar



COISAS DE LUZ ANTIGAS

Aquele namorado que tinha
um nome bom: há quanto tempo foi?
A vida resvalante como gelo
e aquele namorado de nome bom
e férias, ficou perdido em luz,
mais de vinte anos.
Deu-me uma vez a mão
um beijo resvalante à hora de deitar
e na pensão. Mas tinha um nome bom.
falava de cinema e calçava de azul
e um bigode curtinho,
que escorregou aceso como gelo
no centro da pensão.
Rasguei as cartas dele
há quinze anos, em dia de gavetas
e de luz, e nem fotografia me ficou
de desarrumação. Mas tinha um nome bom,
falava de cinema e calçava de azul
e resvalou-me quente como gelo
à hora de deitar:
um namorado sem falar
de amor
(que a timidez maior
e o quarto dos meus pais
nessa pensão
no mesmo corredor)



SONETO DE AMOR

No meu poema ficaste
de pernas para
o ar
(mas também eu
já estive tantas vezes)

Por entre versos vejo-te as mãos
no chão
do meu poema
e os pés tocando o título
(a haver quando eu
quiser)

Enquanto o meu desejo assim serás:
incómodo estatuto:
preciso de escrever-te
do avesso
para te amar em excesso


ANA LUISA AMARAL (n. 1956)

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