ALBANO MARTINS
“...um poeta que, ao escrever fogo, diz luz; de um poeta que, ao cavar abismos, abre os frutos, os espasmos, as vertigens e as solidões do corpo; abre os silêncios e as imanentes magias de um olhar próximo do Eu e do Outro.”
Maria Augusta Silva
UM DOS CAPÍTULOS
Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso.
Que háflores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancurado papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
Há em teus olhos, dados ao momento,
uma tristeza de água reprimida,
que é como o pressentimento
duma próxima despedida.
Tristeza que faz lembrar
dias perdidos de outono
com luz pálida a incidir
nas folhas mortas de sono.
Deixa que a esperança os molhe,
os inunde de alegria.
Cada noite passa e colhe
o gosto dum novo dia.
PALETA
Tens uma paleta
a que faltam
algumas cores. Talvez
porque há substâncias
a que não soubeste
dar expressão. Ou porque elas
são incolores. Ou porque
em toda a realidade
há fendas
que nem pela palavra
nem pela cor
alguma vez
saberás preencher.
FRUTOS
Quando a amada oferece
o seu corpo, ela sabe
que dos frutos apenas
se colhe o sabor.É então
que os dedos
separam as películas,
que a lâmina desce e a água
e o fogo se misturam.
E é então que a vida
e a morte convivem
sob o mesmo tecto.
CEDO OU TARDE
Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre.
E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.
CREPÚSCULO DE AGOSTO
Dos amigos que perdi
não falo. Sei
que estamos em agosto, mês
dos remos escaldantes, sei
que há lodo sob as algas,
sob a pele. Oblíqua,
sei também, a sombra
cai sobre as oliveiras. É
tempo de içares
tuas velas, teus ergueres
teus guindastes
junto ao rio. Dis
poníveis estão
as luzes; preparadas,
ermas estão as águas.
Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tato.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.
COMO UM ARCHOTE
Vem tudo à superfície.
Como se
dentro da casa
um maremoto levantasse
as pedras todas, uma a uma; como se
no centro, iluminadas,
as esferas rodassem
no seu eixo — tudo
de repente se inclina, tudo arde
nesta fogueira acesa
como um archote de sangue, uma lua
de enxofre.
ALBANO MARTINS(n. 1930)
Quadros: CATHERINE DE SAUGY
0 Comments:
Post a Comment
<< Home