O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Tuesday, August 16, 2005

OLGA SAVARY - Erótica, Incandescente e Líquida



Poetisa brasileira, de ascendência russa e portuguesa, Olga Savary emite a sua voz poética feminina através de uma extensa obra - tem vinte e três livros publicados, doze dos quais de poesia, reunidos ultimamente numa antologia intitulada "Repertório Selvagem". Marcadamente erótica, incandescente e líquida, a sua poesia extravasa criativamente os limites do estabelecido e rotulado, jorrando como onda, fogo ou magma...



TRANQUILIDADE NA TARDE

A Liene T. Eiten

Ah, derramar-me líquida sobre o mar
– ser onda indefinidamente –
esperar pela primeira estrela
e dela ser apenas
espelho.



QUERO APENAS

Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.

Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.



PEDIDO

A Manuel Bandeira

Quando eu estiver mais triste
mas triste de não ter jeito,
quando atormentados morcegos
– um no cérebro outro no peito –
me apunhalarem de asas
e me cobrirem de cinza,
vem ensaiando de leve
leve linguagem de flores.

Traze-me a cor arroxeada
daquela montanha – lembra?
que cantaste num poema.

Traze-me um pouco de mar
ensaiando-se em acalanto
na líquida ternura
que tanto já me embalou.

Meu velho poeta canta
um canto que me adormeça
nem que seja de mentira.



AUTO-DESPEDIDA

Há algo nas manhãs que não entendo agora
e a um grito de minhas pernas não atendo.

Ainda depois da noite, noite me espia
e sonho dúvidas enormes e imóveis
como a imobilidade das aranhas.

Tão pouco tempo- e tenho de deixar-me
e queria nunca ter de repartir-me.

Começa a raiva da saudade
que inventei vou ter de mim.



NOCTURNO

A Carlos Drummond de Andrade

E como o óleo
sobre a desconsolada cabeça
que não mais o suportasse
quisesse a solidão
que te decifra,
mãos em vôo além
da janela aberta
foram beber no ar
teu sortilégio, retrato
da lua e seu inventor



O LAGO EM CAIEIRAS

A Jack Dubbel

O lago ocultou um corpo livre
em abraço oco
como faca cortando espelhos.
Veio a vontade de ser esse lago
esse lago lago, que se permitia
magoar desejo há muito aprisionado.
Alguma coisa cresceu dentro de mim,
me fez virar o rosto para o outro lado.
Queria ser esse lago lago lago
– só isto –
debaixo do céu inutilmente azul
por ninguém se importar com ele
porque essa foi a mais selvagem,
a mais bela coisa que já vi.



FOGO

Dar-me toda este verão
urdideiros de rio, é ser
serpente de prata. Verão,
foi feita mais uma vítima
Sou um ser marcado, natureza.

A tarde crava em meu magma
o selo de sua secreta pata.



AR

É da liberdade destes ventos
que me faço.
Pássaro-meu corpo
(máquina de viver),
bebe o mel feroz do ar
nunca o sossego.



A ÁGUA

A água
se enovela pelas pernas
em fio de vigor espiralado
sobre o ventre e o alto das coxas.

O orgasmo é quem mede forças
sem ter ímpeto contra a água.





Quisera desabar sobre ti
como chuva forte.
As coisas são boas quando destroem
e se deixam destruir.
Só assim eu venho:
eco de profundas grutas,
nada leve
uma irrealidade
estar aqui.
Só sei amar assim
- e é assim que te lavro, deserto.


OLGA SAVARY (n.1933)
Ilustrações: Jurgen Gorg

Saturday, August 13, 2005

Ada Negri


Ada Negri, nasceu em Lodi em 1870, cidade da província de Milão. De família humilde, era filha da porteira de um "palazzo" mas conseguiu, através de muitas dificuldades, o diploma de professora primária e formar-se em Letras. Em 1940, foi escolhida membro da "Accademia d’Italia", o que gerou muitos comentários, já que foi a primeira mulher escolhida para fazer parte de tão ilustre casa, na conturbada era de Mussolini.
Os seus primeiros livros reflectiam uma consciência social. Mais tarde, a sua poesia evoluiu para incluir uma imensa afirmação de sexualidade feminina - chamava às outras mulheres as suas "sorelle" (irmãs)- muito diversa da tradicional poesia de amor.
Ada Negri foi profundamente admirada por Florbela Espanca. Hoje, está praticamente esquecida, mesmo em Itália.


AQUELE QUE PASSA

O desconhecido que passa
e te acha ainda digna de uma fugidia palavra de desejo,
Talvez porque na sombra da noite tão doce de Maio
Ainda resplendem teus olhos,
ainda tem vinte anos a ligeira figura deslizante,
Não sabe que foste amada, por aquele que amaste amada,
em plena e soberba delícia de amor,
E em ti não há membro nem ponta de carne ou átomo de alma
que não tenha uma marca de amor.

Que tu viveste apenas para amar aquele que te amava,
E nem que quisesses
podias arrancar de ti essa veste que o amor teceu.
Ele, ignaro,
em ti já não bela, em ti já não jovem,
saúda a graça do deus:
Respira, passando,
em ti já não bela, em ti já não jovem,
o aroma precioso do deus:

Só porque o levas contigo,
doce relíquia à sombra de um sacrário.



MULTIDÃO

Uma folha tomba do plátano,
um frémito sacode o cimo do cipreste,
És tu que me chamas.
Olhos invisíveis sulcam a sombra,
penetram-me como à parede os pregos,
És tu que me fitas.
Mãos invisíveis nos ombros me tocam, para as águas dormentes do lago me atraem,
És tu que me queres.
De sob as vértebras com pálidos toques ligeiros
a loucura sai para o cérebro,
És tu que me penetras.
Não mais os pés pousam na terra,
não mais pesa o corpo nos ares,
transporta-o a vertigem obscura
És tu que me atravessas, tu.


ADA NEGRI(1870-1945)
Poetisa italiana

Thursday, August 11, 2005

FERNANDO PESSOA - As Odes de Ricardo Reis



"Só uma grande intuição pode ser bússola nos descampados da alma; só com um sentido que usa da inteligência, mas se não assemelha a ela, embora nisto com ela se funda, se pode distinguir estas figuras de sonho na sua realidade de uma a outra."

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe

E cala. O mais é nada.


Ricardo Reis, 3-1-1923




Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.


Ricardo Reis, 1-7-1916



Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.


Ricardo Reis, 14-2-1933



Vivem em nós innúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou sòmente o logar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indifferente a todos.
Faço-os callar: eu fallo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada dictam
A quem me sei: eu escrevo.


Ricardo Reis, 13 - 11 - 1935



Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.


Ricardo Reis, 12-6-1914

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