O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Friday, July 30, 2004



Será alguém um dia
levado a pensar em mim
pelo cheiro de laranjeiras
quando eu também
já for “alguém há muito tempo”?


SHUNZEI (1114-1204)



ANANK


Sou uma religiosa sem igreja,
Uma reclusa sem convento, amante de uma deusa sem altar.
Vivo na pele o tormento de uma humanidade que ainda não é.
Vivo no mundo sem nele já acreditar.
Sou sacerdotisa de um templo destruído
à procura de um novo amor e de uma nova fé.
Olho num único sentido,
íntimo e profundo
no centro de mim mesma e espero a luz...
A luz de um outro mundo e a única esperança.
Com ele há-de vir a nova criança e a deusa em que ainda descansa
e as duas serão uma só.
Numa epifania de cores e harmonia,
ele virá, sem armas nem ódios,
o Novo Milénio.


ROSA LEONOR PEDRO (n.1946)

Thursday, July 29, 2004

I D E N T I F I C A Ç Ã O




Pergunto se foi por mim
ou pelo calor inesperado dos meus gestos
que a mim vieste

Pergunto se conheceste
a voz longínqua da minha alma triste
ou se acaso te alcançou
o estranho eco que me atravessa os dias

Venho de mundos
onde o sonho e a vivência se confundem
os códigos são outros e as almas se entreabrem
umas às outras sem palavras
tudo se dá e tudo se recebe
natural e contínuo como a luz dos astros

Pergunto se alguém me viu
alguma vez
se tu me vês
pergunto por quê
volto sempre a perguntar

Fico depois como estátua pensante
petrificada na absurda agonia
da dúvida


MARIANA INVERNO (n.1950)

N O I T E


LA NOTTE, Michelangelo

Busco-te, noite, amorosamente trémula, como as noivas de outrora...
Sou muitas faces da Dor e, no entanto, poderás ver-me sorrir
quando a brisa roçar suavemente o meu respirar de amante silenciada,
envolta na escuridão do teu colo prenho de teias cósmicas.

Vem, noite, vem leito último, dossel de esperanças em farrapos,
costa abrigante onde inscrevo o meu registo de bruxa solitária.

Vem e suavíssima, envolve os meus sonhos nas tuas limalhas secretas,
não me abandones, que em ti me recolho
como a inútil rainha de um reino fantasmagórico e manchado.
Deposita-me, depois, nos braços da aurora,
quando tudo passar e eu puder tentar outra vez o gesto,
a palavra, a indescritível densidade do expressivo coração que é o meu.

Vem, minha amada, vem doce amante...
Vem, noite, e que sejas duradoura.


TESSA ESTATE (1943-2001)

Wednesday, July 28, 2004

PORQUE





Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN (1917-2004)



HORA GRAVE



Quem chora agora em algum lugar do mundo,
sem razão chora no mundo,
chora por mim.

Quem ri agora em algum lugar da noite,
sem razão se ri na noite,
ri-se de mim.

Quem anda agora em algum lugar do mundo,
sem razão anda no mundo,
vem para mim.

Quem morre agora em algum lugar do mundo,
sem razão morre no mundo,
olha para mim.


RAINER MARIA RILKE(1875-1926)
Tradução:José Paulo Paes




TIMIDEZ



Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra calda
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

- e um dia me acabarei.


CECÍLIA MEIRELES(1901-1964)




Tuesday, July 27, 2004

POEMAS INGLESES





Ah quantas máscaras e submáscaras,
Usamos nós no rosto de alma, e quando,
Por jogo apenas, ela tira a máscara,
Sabe que a última tirou enfim?
De máscaras não sabe a vera máscara,
E lá de dentro fica mascarada.
Que consciência seja que se afirme.
O aceite uso de afirmar-se a ensona.
Como criança que ante o espelho teme,
As nossas almas, crianças, distraídas,
Julgam ver outras nas caretas vistas
E um mundo inteiro na esquecida causa;
E quando um pensamento desmascara,
Desmascarar não vai desmascarado.


FERNANDO PESSOA (1888-1935)

Tradução: Jorge de Sena.



A DAMA DE HÉGURI



Ai, flores do verde pinho...

Embora entre tantas outras
talvez nem repares nela,
a flor do pinheiro -
a flor que espera -
já abriu...
em vão.


POESIA DO JAPÃO, séc. VIII

Monday, July 26, 2004

CANÇÃO





A hora virá de nos alegrarmos
juntos dançando sob a lua cheia.
Hemos de cantar a canção mais doce.
A hora virá de dançarmos juntos.
Tu, minha tuya, minha pomba de ouro,
não te amedronte esta lua cheia.
Sob estrela de ouro, sobre chão em flor,
juntos a dançar, juntos a cantar.


POESIA da América do Sul,Quíchuas
Versão de Herberto Helder

AMAR





Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor,um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuido pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)

O AMOR TEM ASAS DE OURO




Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.



NATÁLIA CORREIA, Sonetos Românticos(1990)

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