O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Sunday, March 27, 2005

ANTÓNIO BOTTO, "O ideal estético em Portugal", segundo Pessoa



CURIOSIDADES ESTÉTICAS

O mais importante na vida
É ser-se criador
– criar beleza.

Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.

Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir uma voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.

Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.
E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.



CANÇÕES

Fui agora mexer nas tuas cartas.

Quem pudesse voltar a acreditar
Nessas palavras doidas e transidas
De febre no delírio da paixão
Que arrastaram num sonho as nossas vidas
Misturando-as na mesma reacção!

Aqui há um juramento além da morte.
Ali dizes que vens logo à noitinha;
E um cheiro a vinho e a fruta
– Que doidice!,Paira naquele quarto de hotel
Onde fiquei três dias e três noites
Esquecido de tudo à tua espera!

Estávamos em Março; Primavera.

Nesta um abraço ainda cinge e aperta
Meu corpo vibrante,
E ali rasga o papel o teu ciúme
Num beijo sensualíssimo de amante.

Além, mais alto, impões que te apareça
– E a noite era uma noite muito fria!

Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?

O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: «Não volto a procurar-te.»
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.

Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
– Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer
– Ficarmos alheados ou suspensos
–Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...

Não leias estes versos.
Tudo isto,
Tudo isto, afinal, é só mentira.



SONETO

Se, para possuir o que me é dado,
Tudo perdi e eu própio andei perdido,
Se, para ver o que hoje é realizado,
Cheguei a ser negado e combatido.


Se, para estar agora apaixonado,
Foi necessário andar desiludido,
Alegra-me sentir que fui odiado
Na certeza imortal de ter vencido!


Porque, depois de tantas cicatrizes,
Só se encontra sabor apetecido
Àquilo que nos fez ser infelizes!

E assim cheguei à luz de um pensamento
De que afinal um roseiral florido
Vive de um triste e oculto movimento.



Á MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão
- Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,

O que tem sido a vida - esta boemia
Coberta de farrapos e de estrelas
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma:
Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo. . .

Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes. . .
E a mesma intriga; as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,

Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
- Sem estímulo, sem fé, sem convicção...

Poetas, escutai-me: transformemos
A nossa natural angústia de pensar
- Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar.


ANTÓNIO BOTTO (1897-1959)

Friday, March 25, 2005

JUDITH TEIXEIRA - Poetisa Sáfica do Modernismo Português

"Muitas vezes alteramos a Verdade,
mas só para dar a máxima expressão de verdade
à nossa fantasia."

Judith de Teixeira



A MINHA AMANTE

Dizem que eu tenho amores contigo!
Deixa-os dizer!…
Eles sabem lá o que há de sublime
Nos meus sonhos de prazer…
De madrugada, logo ao despertar,
Há quem me tenha ouvido gritar
Pelo teu nome…

Dizem
- e eu não protesto -
Que seja qual foro meu aspecto
tu estás
na minha fisionomia
e no meu gesto!

Dizem que eu me embriago toda em cores
Para te esquecer…
E que de noite pelos corredores
Quando vou passando para te ir buscar,
Levo risos de louca, no olhar!

Não entendem dos meus amores
contigo
-Não entendem deste luar de beijos…
- Há quem lhe chame a tara perversa,
Dum ser destrambelhado e sensual!
Chamam-te o génio do mal -
O meu castigo…
E eu em sombras alheio-me dispersa…

E ninguém sabe que é de ti que eu
vivo…
Que és tu que doiras ainda,
O meu castelo em ruína…
Que fazes da hora má, a hora linda
Dos meus sonhos voluptuosos -
Não faltes aos meus apelos dolorosos
- Adormenta esta dor que me domina!



A ESTÁTUA

O teu corpo branco e esguio
Prendeu todo o meu sentido…
Sonho que pela noite, altas horas,
Aqueces o mármore frio
Do alvo peito entumecido…

E quantas vezes pela escuridão
A arder na febre de um delírio,
Os olhos roxos como um lírio
Venho espreitar os gestos que eu
sonhei…

- Sinto os rumores duma convulsão,
A confessar tudo que eu cismei

Ó Vénus sensual!
Pecado mortal
Do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
Num tormento,
A singular razão dos meus cuidados




"...toda a verdade da minha sensibilidade constantemente sequiosa de Beleza, que eu sinto o desejo imperioso, enorme, de dizer à inteligência do meu tempo, aquelas razões de mocidade emotivas que existem na minha alma e na alma de todos aqueles que, como eu, fazem da criação artística a sua mais nobre razão de vivir!


...a minha obra de poeta não era uma bola de sabão entre a curiosidade dos homens. Na sua estrutura poética e musical, ainda naqueles contornos mais vagos e diáfanos em que eu tinha feito adormecer os meus sonhos, uma substância havia que palpitava, que vivia, que inquietava as almas, enfim. E se as inquietava era porque nessa substância «alguma coisa» havia. E o criar «alguma coisa» é em arte o fulcro magnífico da sua missão."


SINFONIA HIBERNAL

Adoro o Inverno.
Envolvo-me assim mais no teu carinho
Friorenta e louca
Nascem-me na alma os beijos
Que se vão aninhar na tua boca!

Gosto da neve a diluir-se ao sol
Em risos de cristal!
Vem-me turbar a ânsia do teu rogo
E a neve fulgente
Dos meus dentes trémulos
Vai fundir-se na taça ardente,
Rubra e original
Na qual eu bebo os teus beijos em fogo!

Tu adormentas a minha dor na doce
sombra dos teus cabelos,
E eu envolvo-me toda nos teus braços
Para dormir e sonhar!
- Lá fora que não deixe de chover,
E o vento que não deixe de clamar!

Deixá-lo gritar!
Que importa o seu clamor,
Se me abrasa o teu olhar
Vivíssimo?!
Ateia, meu amor, o fogo em que me
exalto
- Enrola-me mais
Ainda mais no teu afago;
Que esta alegria do nosso amor
Suavíssimo,
Será mais forte e gritará mais alto!




ÚLTIMA FRASE

Minha alma ergueu-se para além de ti...
Tive a ânsia de mais alto
—abri as asas, parti!



JUDITH TEIXEIRA (1880-1959)
Quadros: MONTSERRAT

Sunday, March 13, 2005

MANUEL BANDEIRA

O POETA DO VERSO LIVRE




POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.



POEMETO ERÓTICO

Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...
Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...
Volúpia da água e da chama...
A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano
a do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...



VOU-ME EMBORA PARA PASÁRGADA

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d`água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.



TREM DE FERRO

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(trem de ferro, trem de ferro)
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
(café com pão é muito bom)
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matar minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
(trem de ferro, trem de ferro)



TESTAMENTO

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros -- perdi-os...
Tive amores -- esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!


MANUEL BANDEIRA (1886 – 1968)

Tuesday, March 08, 2005

POETISAS DO NOSSO TEMPO

No Dia Internacional da Mulher, que é para mim todos os dias, aqui deixo a palavra poética de Mulheres do Nosso Tempo...


É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro.

SOPHIA DE MELLO BREYNER




A DOCE CANÇÃO

Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena.

Anjos de lira dourada
debruçaram-se da altura.
Não houve, no chão criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha vez tão pura.

Acordei a quem dormia,
fiz suspirarem os defuntos.
Um arco-íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.

O mistério do meu canto
Deus não soube, tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
- Todos perdidos de encanto só eu morrendo de triste!

Por isso tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não aumente,
para trazer o Universo de
pólo a pólo contente!

CECÍLIA MEIRELLES



ULTIMO BRINDE

Bebo ao lar em pedaços,
À minha vida feroz,
À solidão dos abraços
E a ti, num brinde, ergo a voz...

Ao lábio que me traiu,
Aos mortos que nada vêem,
Ao mundo, estúpido e vil,
A Deus, por não salvar ninguém.



Tradução de Rubens Figueiredo

ANNA AKHMATOVA



ANINHA E SUAS PEDRAS

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos
poemas.
Recria tua vida, sempre,
sempre.
Remove pedras e planta
roseiras e faz doces.
Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos
jovens
e na memória das
gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de
todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

CORA CORALINA



EU

Sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada, a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte;
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê.....
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

FLORBELA ESPANCA



Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

HILDA HILST




POESIA

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos


Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor


Prometido nas formas que perdemos.
Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.


Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.


Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,


Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.

SOPHIA DE MELLO BREYNER

Thursday, March 03, 2005

CECÍLIA MEIRELES


Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?




MORRO DO QUE HÁ NO MUNDO

Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.
Noções
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos
afligidos.
Descem pela água minhas naves
revestidas de espelhos.
Cada Lâmina arrisca um olhar, e investiga
o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à
correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas
que não se encontram.
Virei-me sobre minha própria experiência,
e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por
mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e
da beleza.
Ó meu Deus, isto é que é alma:
qualquer coisa que flutua por este
corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano
sobre a areia passiva e inúmera...



RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim
magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem
força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem
se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?



MOTIVO

Eu canto porque o instante
existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
- Não sei, não sei. Não sei se
fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é
tudo.
Tem sangue eterno e asa
ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.



FANTASMA

Para onde vais, assim calado,
de olhos hirtos, quieto e deitado,
as mãos imóveis de cada lado?
Tua longa barca desliza
por não sei que onda, límpida e lisa,
sem leme, sem vela, sem brisa...
Passas por mim na órbita imensa
de uma secreta indiferença,
que qualquer pergunta dispensa.
Desapareces do lado oposto
e, então, com súbito desgosto,
vejo que teu rosto é o meu rosto,
e que vais levando contigo,
pelo silêncioso perigo
dessa tua navegação,
minha voz na tua garganta,
e tanta cinza, tanta, tanta,
de mim, sobre o teu coração!



É PRECISO NÃO ESQUECER NADA

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo
aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a
nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso
rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz,
o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia
carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já
não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não
nos pertence.


CECÍLIA MEIRELES (1901-1964)

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