O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Tuesday, August 31, 2004

FOGO CRIADOR



Se eu tivesse o espaço, a hora, a absoluta amplidão
do teu gesto no meu - como em água me enrolo
e para a água remeto todos os meus anseios -
e a doçura infinita de te pensar também água
também sonho também luz

Se te tivesse aqui onde o silêncio
sucedâneo dos silêncios que guardamos
me embala e revigora

Talvez que ao espaço vazio outro espaço
sobreposto
alumiasse a noite de um fogo criador
e eu já não fosse aquela que te sonha
e tu tão pouco alguém a quem eu falto.



MARIANA INVERNO (n.1950)

Quadro:Aleksey & Marina

LUA ADVERSA



Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
Tenho outras de ser sozinha

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


CECÍLIA MEIRELES (1901 – 1964)

Monday, August 30, 2004

JOSÉ GOMES FERREIRA


SE EU PUDESSE ILUMINAR POR DENTRO
AS PALAVRAS DE TODOS OS DIAS
(O soneto que só errado ficou certo)


Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva


JOSÉ GOMES FERREIRA (1900-1984)


Sunday, August 29, 2004

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas dos teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue,
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

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ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Além da terra, além do céu
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastros dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fudamental essencial
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar
o verbo pluriamar,
razão de ser e viver.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE(1902-1987)

SE
Rudyard Kypling



Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretencioso;
Se és capaz de pensar... sem que a isso só te atires;
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: "Persiste!";
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao mínimo fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que é mais - tu serás um Homem, ó meu filho!


RUDYARD KIPLING (1865-1936)


Saturday, August 28, 2004

NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.


FERNANDO PESSOA (1888 - 1935)

Thursday, August 26, 2004

ADÉLIA PRADO




AMOR NO ÉTER

Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos
mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.

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DIREITOS HUMANOS

Sei que Deus mora em mim
como sua melhor casa.
sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.
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O POETA FICOU CANSADO

Pois não quero mais ser Teu arauto.
Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
(...)
Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha, (...)

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POEMA COMEÇANDO DO FIM

Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

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A FILHA DA ANTIGA LEI

Deus não me dá sossego.
É meu aguilhão.
Morde meu calcanhar como serpente,
faz-se verbo, carne, caco de vidro,
pedra contra a qual sangra a minha cabeça.
Eu não tenho descanso neste amor.
Eu não posso dormir sob a luz do Seu olho que me fixa.

Quero de novo o ventre de minha mãe,
sua mão espalmada contra o umbigo estufado, me escondendo de Deus.

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A INVENÇÃO DE UM MODO

Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.
O dia da ira

As coisas tristíssimas,
o rolomag, o teste de Cooper,
a mole carne tremente entre as coxas,
vão desaparecer quando soar a trombeta.
Levantaremos como deuses,
com a beleza das coisas que nunca pecaram,
como árvores, como pedras,
exatos e dignos de amor.
Quando o anjo passar,
o furacão ardente do seu vôo
vai secar as feridas,
as secreções desviadas dos seus vasos
e as lágrimas.
As cidades restarão silenciosas, sem um veículo:
apenas os pés de seus habitantes
reunidos na praça, à espera de seus nomes.

ADÉLIA PRADO (n.1935)


LÍDIA JORGE Sou de vidro





Sou de vidro
Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita


LÍDIA JORGE (n.1946)

Wednesday, August 25, 2004

GRIPENBERG, CRAVEIRINHA, NATÁLIA e Mariana Inverno





VOA, MEU SONHO

Voa, meu sonho, voa sobre as planícies geladas,
Voa sobre as árvores mortas do Inverno,
Paira sobre a lonjura das belas noites de estrelas,
Nunca pares, continua a voar cada vez mais.
Arde, minha saudade, como uma chama eterna,
Arde na escuridão onde tudo se apagou e foi há muito.
Eterna é esta saudade, é a vida, é a ousadia,
E o fogo que salta sobre o véu de cinzas.

Compreende que para quem nada conseguiu,
E junto à praia nunca repousou,
Não há morte para alta fogueira que ardeu,
Não há medida para as terras azuis da sua saudade.
O meu coração vive de saudade em saudade.
Sempre para desconhecida costa se volta –
A saudade de um poeta não obedece às leis do espaço,
A terra de sonhos não tem fronteiras.

BERTEL GRIPENBERG (1878-1947)
Poeta finlandês
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QUERO SER TAMBOR

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

JOSÉ CRAVEIRINHA (1922-2003)
Poeta moçambicano
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SOBE O PANO

Onde se solta o estrangulado grito
Humaniza-se a vida e sobe o pano
Chegam aparições dóceis ao rito
Vindas do fosso mais fundo do humano.

Ilumina-se a cena e é sobretudo,
No palco, o real oculto no conflito.
É tragédia? É comédia? É, por engano,
O sequestro de um deus num barro aflito?

É o teatro: a magia que descobre
O rosto que a cara do homem cobre;
E reflectidos no teu espelho - o actor -

Os teus fantasmas levam-te para onde
O tempo puro que te corresponde
Entre horas ardidas está em flor.
NATÁLIA CORREIA (1923-1993)

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A RESISTENTE

A tudo eu resisto
- inquebrável estandarte
de mim mesma

À dor e ao clamor
da tua alma inquieta e só
eu resisto

Resisto à fome
de amor íntimo
que me consome
Aos dias pesados
aos sonhos confusopremonitórios
às garras do tempo alucinado
eu resisto

mesmo ao canto tentador
mesmo à doçura dos anjos
resisto
resisto

É a resistência quem me confirma
no que sou e no que não sou
a que me torna inquebrável
perdurável

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh!

Eternamente
aguardo um céu perdido
na sua memória me confirmo
resistente coleccionadora
das redondas, opalinas,
das lunares lágrimas ocultas
num canto escuro
do meu coração adiado.

MARIANA INVERNO (n.1950)

Monday, August 23, 2004

JEITO DE ESCREVER



Não sei que diga.

E a quem o dizer?

Não sei que pense.

Nada jamais soube.



Nem de mim, nem dos outros.

Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...

Seja do que for ou do que fosse.

Não sei que diga, não sei que pense.



Oiço os ralos queixosos, arrastados.

Ralos serão?

Horas da noite.

Noite começada ou adiantada, noite.

Como é bonito escrever!



Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.

Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.

No tempo vago...

Ele vago e eu sem amparo.

Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas!



E por mais não ter que relatar me cerro.

Expressão antiga, epistolar: me cerro.

Tão grato é o velho, inopinado e novo.

Me cerro!



Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,

solta a outra, de pena expectante.

Uma que agarra, a outra que espera...

Ó ilusão!

E tudo acabou, acaba.

Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?



Silêncio.

Nem pássaros já, noite morta.

Me cerro.

Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada,

da ausência e solidão.



Da indiferença.

Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.

Noite vasta e contínua, caminha, caminha.

Alonga-te.

A ribeira acordou.


IRENE LISBOA(1892-1958)

Sunday, August 22, 2004

A ROSA que se abre no meu peito...





Sou a tua coroa e o teu diadema
a rosa que se abre no meu peito
quando o ar que pela tua boca respiro
entra na minha e te beijo...

Amar-te mais não posso
nem mais nada deste mundo anseio
Porque és tu
ó Deusa Mãe
quem desde sempre
vive e respira dentro do meu peito
Amém

ROSA LEONOR PEDRO (n.1946)

Saturday, August 21, 2004

ANTERO, Eugenio de Andrade, FEDERICO e Mariana Inverno


Primeiros conselhos do outono

Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da natureza:
- «Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel deveza,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária,
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor das mil, que amaste,)
Com ódio e raiva e dor - que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!» -

Antero de Quental

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Beber-te! como bebo o ar da vida...
E como bebo a luz do sol doirado...
E a poesia do templo consagrado...
E o consolo no olhar da mãe querida...

Como bebo nos livros do saber
A palavra dos Deuses, e o segredo
Da existência nas folhas do arvoredo...
E em longas noites de cruel sofrer...

Como bebe no cálix o Deus-vivo
Quem o não sente andar dentro de si...
Como eu nesses teus olhos já bebi
A água que hei-de beber enquanto vivo!

ANTERO DE QUENTAL(1842-1891)





Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

EUGENIO DE ANDRADE (n.1923)




ABANDONO
¡Dios mío, he venido con
la semilla de las preguntas!
Las sembré y no florecieron.
(Un grillo canta
bajo la luna.)
¡Dios mío, he llegado con
las corolas de las repuestas,
pero el viento no las deshoja!
(Gira la naranja
irisada de la tierra.)
¡Dios mío, Lázaro soy!
Llena de aurora, mi tumba
da a mi carro negros potros.
(Por el monte lírico
se pone la luna.)
¡Dios mío, me sentaré
sin pregunta y con respuesta!
a ver moverse las ramas.
(Gira la naranja
irisada de la tierra.)

Federico García Lorca (1898 - 1936)






FIO DE PRATA

Fico um instante
presa do silêncio e da agonia

Sei que me sou
para além das minhas dores

E
no entanto
como segurar o fio de prata
bem alto
lá onde o encanto não esmorece

Mariana Inverno (n.1950)

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Manhã no Real Jardim Botânico

Jardim depois das águas
um estremecer de aromas
(solidão caminhante)

fetos azáleas mariposa evadida
de um qualquer sonho
repouso no carvalho robusto
testemunha antiga
da passagem dos ciclos

acesos inebriantes
os lírios magníficos - a cor!
pássaros dulcificam o ar
ainda húmido
(solidão atordoada)

por onde em mim
corre o fio
que me levará
a mim?

ausculto as folhas o silêncio
as fragrantes lufadas
de uns ares poéticos sem mácula
a pedra dos bancos das estátuas
saturada pelo tempo abundante
e seus registos
(solidão reconfortada)

entrevejo passagens
assinaladas pontes de som e luz
concertadas no tempo
no espaço e no resto
alquimia algum mistério
onde busco o respirar
dos dias
por vir
(solidão reconfirmada)


Mariana Inverno (n.1950)



Thursday, August 19, 2004

FLORBELA ESPANCA - A Busca do Verso Puro



LOUCURA

Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...

Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...

Pesadelos de insónia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!

Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!


NIHIL NOVUM

Na penumbra do pórtico encantado
De Bruges, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egipto com Loti;
Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.

No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bósforo errei, pensando em ti!
O silêncio dos claustros conheci
Pelos poentes de nácar e brocado...

Mordi as rosas brancas de Ispaã
E o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,

Triste, a florir, numa ansiedade vã!
Sempre da vida ? o mesmo estranho mal,
E o coração ? a mesma chaga aberta!


A VIDA

É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés de alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo "Pedro Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo de onde vem!

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...

Amar-te a vida inteira eu não podia,
A gente esquece sempre o bom de um dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a vida!



Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos.
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...



TORTURA

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!


FLORBELA ESPANCA (1894-1930)


Wednesday, August 18, 2004

R U M I


Vem.
Conversemos através da alma.
Revelemos o que é secreto aos olhos e ouvidos.
Sem exibir os dentes, sorri comigo, como um botão de rosa.
Entendamo-nos pelos pensamentos, sem língua, sem lábios.
Sem abrir a boca, contemo-nos todos os segredos do mundo, como faria o intelecto divino.
Fujamos dos incrédulos que só são capazes de entender se escutam palavras e vêem rostos.
Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um, falemos desse outro modo.
Como podes dizer à tua mão : "toca", se todas as mãos são uma?
Vem, conversemos assim.
Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma.
Fecho pois a boca e conversemos através da alma.
Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.
Vem, se te interessas, posso mostrar-te.


Jalaluddin RUMI (sec.XII)



Monday, August 16, 2004

O Canto de TAGORE





Daqui por diante eu me expressarei
em sussurros...
...Gastei muitas e muitas horas na luta
entre o bem e o mal. Mas agora o prazer do
meu companheiro de jogos nos dias vazios
é atrair o meu coração para o seu.
E eu não compreendo
por que esse repentino convite
para não sei qual inútil inconsequência!

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Se não falas, vou encher o meu
coração com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite em
sua vigília estrelada, com a cabeça
pacientemente inclinada.

A manhã certamente virá, a
escuridão se dissipará, e a tua voz se
derramará em torrentes douradas por todo o céu.

Então as tuas palavras voarão em
canções de cada ninho dos meus pássaros,
e as tuas melodias brotarão em flores por
todos os recantos da minha floresta.



Aqueles que me amam neste
mundo procuram a todo custo manter-me
preso. Mas o teu amor, muito maior que o
deles, é diferente, pois tu me conservas livre.

Eles temem que eu os esqueça, e por
isso nunca me deixam sozinho. No entanto,
passam-se dias e dias, e tu não apareces.

Mesmo que eu não te invoque em
minhas orações, e mesmo que eu não te
conserve em meu coração, o teu amor por
mim sempre fica esperando o meu amor.

O dia já se foi, e a sombra
envolve a terra. É hora de ir ao rio para
encher o meu cântaro.

O ar da tarde está ansioso com a
música triste da água. Sim, ele me chama
para entrar no crepúsculo. Ninguém passa
pelo caminho solitário. O vento se levanta e
as ondas se encavalam no rio.

Não sei se voltarei para casa. Não sei
com quem poderia me encontrar. No vau
do rio, num pequeno barco, o homem
desconhecido toca o seu alaúde.



... A cortina que separa as minhas
canções das tuas por um momento
esvoaçou ao vento. Então vi que a luz
da tua manhã estava repleta das canções
mudas que eu jamais cantei... Pensei
que as aprenderia aos teus pés, e
sentei-me, em silêncio.



Ó meu Deus, permite-me
que todos os meus sentidos se dilatem,
e eu farei este mundo roçar os teus pés,
numa derradeira saudação a ti.


RABINDRANATH TAGORE (1861-1941)


Sunday, August 15, 2004

SOPHIA, CARLOS QUEIROS E NUNO JUDICE



Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordante
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!



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Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.


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A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN(1919-2004)

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DESAPARECIDO

Sempre que leio nos jornais:
«De casa de seus pais desapar’ceu...»

Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
- Livre o instinto, em vez de coagido.
«De casa de seus pais desapar’ceu...»

Eu, o feliz desaparecido!

CARLOS QUEIROS (1907-1949)
Desaparecido e Outros Poemas
Lisboa, Livraria Bertrand, 1950

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PRINCIPIOS

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

NUNO JÚDICE (n.1949)

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PEDRO, LEMBRANDO INES

Em quem pensar,agora,senão em ti? Tu, que

me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a

manhã da minha noite. É verdade que te podia

dizer:"Como é mais fácil deixar que as coisas

não mudem,sermos o que sempre fomos,mudarmos

apenas dentro de nós próprios?"Mas ensinaste-me

a sermos dois;e a ser contigo aquilo que sou,

até sermos um apenas no amor que nos une,

contra a solidão que nos divide.Mas é isto o amor:

ver-te mesmo quando te não vejo,ouvir a tua

voz que abre as fontes de todos os rios,mesmo

esse que mal corria quando por ele passámos,

subindo a margem em que descobri o sentido

de irmos contra o tempo,para ganhar o tempo

que o tempo nos rouba.Como gosto,meu amor,

de chegar antes de ti para te ver chegar:com

a surpresa dos teus cabelos,e o teu rosto de água

fresca que eu bebo,com esta sede que não passa.Tu:

a primavera luminosa da minha expectativa,

a mais certa certeza de que gosto de ti,como

gostas de mim,até ao fundo do mundo que me deste.

NUNO JÚDICE(n.1949)


Saturday, August 14, 2004

CLARICE: A Lucidez Perigosa





Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.





Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre
o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por
mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.





A LUCIDEZ PERIGOSA

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
– já me aconteceu antes.
Pois sei que
– em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.


CLARICE LISPECTOR (1920-1977)


Friday, August 13, 2004

RILKE



Amo as horas sombrias do meu ser
em que os meus sentidos se aprofundam;
nelas encontrei, como em velhas cartas,
o meu dia a dia já vivido,
ultrapassado e vasto como numa lenda.

Elas me ensinam que possuo espaço
p’ra uma intemporal Segunda vida.
E por vezes sou como a árvore
que, madura e tumorosa, sobre uma campa
cumpre o sonho que a criança de outrora
(abraçada por suas cálidas raizes)
perdeu em tristezas e canções.

RAINER MARIA RILKE (1875-1926)
Tradução: Ana Hatherly






SE É QUE ASSIM DESEJAS

Se é que assim desejas,
se for assim do teu gosto,
cessarei de cantar!
Se com isso agitar
teu coração,
do meu olhar o triste brilho
desviarei do teu rosto...
E se eu, de súbito, te assustar
no teu passeio despreocupado,
afastar-me-ei do teu lado
e tomarei outro trilho...

Se eu te embaraçar – ai de mim -
quando teceres as tuas flores,
flor encantada,
esquivar-me-ei do teu
solitário jardim
e da tua doce imagem...
E se eu tornar a água turva e agitada,
jamais remarei a minha barca
para a tua margem...

RABINDRANATH TAGORE (1861-1941)
Trad: Victor de Sa Coelho


Thursday, August 12, 2004

ROBERTO JUARROZ Poesia Vertical



ESTOY CONTIGO

Estoy contigo.
Pero por encima de tu hombro
me dice adiós tu mano que se aleja.

Entonces yo contengo mi mano
para que no nos traicione ella también.

E insisto:
estoy contigo.
Los innegables títulos del adiós
abandonan entonces provisoriamente sus derechos.

Y nuestras manos se aquietan
en las equidistancias de estar juntos.

............

ALGUN DÍA...

Algún día encontraré una palabra
que penetre en tu vientre y lo fecunde,
que se pare en tu seno
como una mano abierta y cerrada al mismo tiempo.

Hallaré una palabra
que detenga tu cuerpo y lo dé vuelta,
que contenga tu cuerpo
y abra tus ojos como un dios sin nubes
y te use tu saliva
y te doble las piernas.
Tú tal vez no la escuches
o tal vez no la comprendas.
No será necesario.
Irá por tu interior como una rueda
recorriéndote al fin de punta a punta,
mujer mía y no mía
y no se detendrá ni cuando mueras.

...............

EL CENTRO DEL AMOR

El centro del amor

no siempre coincide

con el centro de la vida.


Ambos centros se buscan entonces

como dos animales atribulados.

Pero casi nunca se encuentran,

porque la clave de la coincidencia es otra:

nacer juntos.


Nacer juntos,

como debieran nacer y morir

todos los amantes.

ROBERTO JUARROZ (n.1925)




Wednesday, August 11, 2004

A Poesia Experimental de ANA HATHERLY


O DECIFRADOR DE IMAGENS

O decifrador de imagens
persegue um fantasma de vestígios
como Ulisses amarrado
ao querer do conhecer

A descoberta é invenção provisória:
as vozes não se vêem
o que se vê não se ouve

A imaginação
ergue-se do arrepio da sombra
guerrilha entre parênteses
ergue-se da constante chacina
procurando outra coisa
outra causa
o outro lado do ver


ANA HATHERLY(n.1929)
O Pavão Negro
Assírio & Alvim
2003



O que é o espaço?

O que é o espaço
senão o intervalo
por onde
o pensamento desliza
imaginando imagens?

O biombo ritual da invenção
oculta o espaço intermédio
o interstício
onde a percepção se refracta

Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível


ANA HATHERLY (n.1929)
O Pavão Negro
Assírio & Alvim
2003




ERA ASSIM:

era assim:

queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?
quanto me
queres?
quanto me
desejas?
ah quanto te quero
quando te quero
quando me queres...



ANA HATHERLY(n.1929)
um calculador de improbabilidades
Quimera
2001





Tuesday, August 10, 2004

POEMAS INCONJUNTOS



Vai alta no céu a lua da Primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.


Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam como tu queres.


Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.


ALBERTO CAEIRO
Poesia de FERNANDO PESSOA (1888-1935)


CANTATA DE PAZ

Sophia de Mello Breyner, por Arpad Szenes

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN (1917-2004)



COMIGO ME DESAVIM


Comigo me desavim:
Vejo-me em grande perigo!
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim!

Antes que este mal tivesse
Da outra gente fugia:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse!

Que cabo espero, ou que fim
Deste cuidado, que sigo
Pois trago a mim comigo
Tamanho inimigo em mim!


FRANCISCO SÁ DE MIRANDA (1481-1558)
Cancioneiro Geral





Friday, August 06, 2004

NÃO POSSO ADIAR O AMOR



Não posso adiar o amor
Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio

Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração


ANTÓNIO RAMOS ROSA (n.1924)



HÁ-DE UMA GRANDE ESTRELA CAIR NO MEU COLO




Há-de uma grande estrela cair no meu colo...
A noite será de vigília,

E rezaremos em línguas
Entalhadas como harpas.

Será noite de reconciliação-
Há tanto Deus a derramar-se em nós.

Crianças são os nossos corações,
anseiam pela paz, doces-cansados.

E os nossos lábios desejam beijar-se-
Por que hesitais?

Não faz meu coração fronteira com o teu?
O teu sangue não pára de dar cor às minhas faces.

Será noite de reconciliação,
Se nos dermos, a morte não virá.

Há-de uma grande estrela cair no meu colo.


ELSE LASKER-SCHULER (1869-1945)
Baladas Hebraicas

QUERO UMA VIDA EM FORMA DE ESPINHA



Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomanglo
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente.


BORIS VIAN (1920-1959)


Thursday, August 05, 2004

A ROSA DO MUNDO


Quem sonhou que a beleza passa como um sonho?
Por estes lábios vermelhos, com todo o seu magoado orgulho,
Tão magoados que nem o prodígio os pode alcançar,
Tróia desvaneceu-se em alta chama fúnebre,
E morreram os filhos de Usna.

Nós passamos e passa o trabalho do mundo:
Entre humanas almas que se agitam e quebram
Como as pálidas águas e seu fluxo invernal,
Sob as estrelas que passam, sob a espuma do céu,
Vive este solitário rosto.

Inclinai-vos, arcanjos, em vossa incerta morada:
Antes de vós, ou de qualquer palpitante coração,
Fatigado e gentil, alguém esperava junto ao seu trono;
Ele fez do mundo um caminho de erva
Para os seus errantes pés.



YEATS (1865-1939)

Tradução: JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA



UM DIA QUE NÃO CHEGA



ando a inventar um dia
que não chega
desde o distante dia
em que nasci

tempo do não ruído
azul e violeta como os céus
numa pintura antiga

todos à escuta
de alguma coisa na linha muda do horizonte sem fim
alguma coisa que haveria de nos tocar
como a cor da terra
como sal de água espumosa e viva
na pele de alguém adormecido

um tempo
para entrançar
flores e esperança
nos membros soltos da mulher dançante
para abrigar
a luz e a sombra
na cova uterina dos princípios
um tempo
para juntar mortos e vivos
no mesmo mantra redentor

como
quando os cenários se apagam
no sentir do abraço
e tudo nos parece
desmedidamente
uma coisa só

MARIANA INVERNO(n.1950)



Tuesday, August 03, 2004

A CARÍCIA PERDIDA



Sai-me dos dedos a carícia sem causa,
Sai-me dos dedos... No vento, ao passar,
A carícia que vaga sem destino nem fim,
A carícia perdida, quem a recolherá?
Posso amar esta noite com piedade infinita,
Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, andará... andará...
Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
Se estremece os ramos um doce suspirar,
Se te aperta os dedos uma mão pequena
Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.
Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
No vento fundida, me reconhecerás?


ALFONSINA STORNI(1892-1938)

Tradução: Carlos Seabra


ARRE, que tanto é muito pouco!






ARRE, que tanto é muito pouco!
Arre, que tanta besta é muito pouca gente!
Arre, que o Portugal que se vê é só isto!
Deixem ver o Portugal que não deixam ver!
Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!
Ponto.

Agora começa o Manifesto:
Arre!
Arre!
Oiçam bem:
ARRRRRE!





ÁLVARO DE CAMPOS(1890-?)

Poesia de FERNANDO PESSOA(1888-1935)

Ilustração: Pormenor do Mural de Almada Negreiros



Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

ÁLVARO DE CAMPOS(1890-?)

Poesia de FERNANDO PESSOA(1888-1935)




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