O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Saturday, November 27, 2004

MARIANA INVERNO





fechou-se o coração

tantos transtornos

à tona de água
a máscara das palavras
quase náufragas

insisto

entre silêncios e sons a estrebuchar
devolvo ainda
(se bem que trémulo)
este meu olhar de amor
sobre o cenário


MARIANA INVERNO (n.1950)

Thursday, November 25, 2004

EUGÉNIO DE ANDRADE


Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.



POEMA À MÃE

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!

Por isso, às vezes,
as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...
Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
"Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal..."

Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...

Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...Boa noite.
Eu vou com as aves!



QUASE NADA

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.

Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.



AS PALAVRAS

São como cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,um incêndio.
Outras,orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?



ESPERA

Horas, horas sem fim,
graves, profundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.

Até que um passáro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


A BOCA

A boca,
onde o fogo de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?


EUGÉNIO DE ANDRADE (n.1923)


Tuesday, November 23, 2004

ALBANO MARTINS



“...um poeta que, ao escrever fogo, diz luz; de um poeta que, ao cavar abismos, abre os frutos, os espasmos, as vertigens e as solidões do corpo; abre os silêncios e as imanentes magias de um olhar próximo do Eu e do Outro.”
Maria Augusta Silva


UM DOS CAPÍTULOS

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso.
Que háflores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancurado papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.



Há em teus olhos, dados ao momento,
uma tristeza de água reprimida,
que é como o pressentimento
duma próxima despedida.
Tristeza que faz lembrar
dias perdidos de outono
com luz pálida a incidir
nas folhas mortas de sono.
Deixa que a esperança os molhe,
os inunde de alegria.
Cada noite passa e colhe
o gosto dum novo dia.



PALETA

Tens uma paleta
a que faltam
algumas cores. Talvez
porque há substâncias
a que não soubeste
dar expressão. Ou porque elas
são incolores. Ou porque
em toda a realidade
há fendas
que nem pela palavra
nem pela cor
alguma vez
saberás preencher.



FRUTOS

Quando a amada oferece
o seu corpo, ela sabe
que dos frutos apenas
se colhe o sabor.É então
que os dedos
separam as películas,
que a lâmina desce e a água
e o fogo se misturam.
E é então que a vida
e a morte convivem
sob o mesmo tecto.



CEDO OU TARDE

Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre.
E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.



CREPÚSCULO DE AGOSTO

Dos amigos que perdi
não falo. Sei
que estamos em agosto, mês
dos remos escaldantes, sei
que há lodo sob as algas,
sob a pele. Oblíqua,
sei também, a sombra
cai sobre as oliveiras. É
tempo de içares
tuas velas, teus ergueres
teus guindastes
junto ao rio. Dis
poníveis estão
as luzes; preparadas,
ermas estão as águas.


Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tato.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.



COMO UM ARCHOTE

Vem tudo à superfície.
Como se
dentro da casa
um maremoto levantasse
as pedras todas, uma a uma; como se
no centro, iluminadas,
as esferas rodassem
no seu eixo — tudo
de repente se inclina, tudo arde
nesta fogueira acesa
como um archote de sangue, uma lua
de enxofre.


ALBANO MARTINS(n. 1930)

Quadros: CATHERINE DE SAUGY

Friday, November 19, 2004

ANA MARQUES GASTÃO



Escreve, se puderes, pois meu corpo oscila, veloz, no círculo
do vento
escreve antes que o sol sangre de mim.
Escreve, se puderes, hoje ainda, assim o grão do teu corpo
o permita
escreve antes que a nostalgia desça sobre nós.
Escreve, se puderes, contra a morte, até se perderem tuas
ávidas mãos
escreve antes que em meu colo caiam mutiladas.



Sombra sou
num jardim perdido.
Memória
inumana.

Onde estás?
A tristeza
é uma árvore
disforme.

Em que céus
ou águas
e acolhe
teu futuro?

Dor suprema
a das coisas que ignoro.

Terra sem mãe.



Não há lugar para mim
neste país de Inverno.
As mães cegaram em seus ventres
e cada homem abandona
a juventude na cidade ácida.

Tinhamos o movimento da Terra
e eu compreendia as coisas
como se absorve a luz com os olhos.
Existiam as tuas mãos.



Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu partir não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discuso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarda doce como mel.



Se queres ouvir
a mãe
em tua memória
arcaica
deixa as palavras verem.
Aceita o colo
vivo
a álgida solidão
e ultrapassa o poema.


ANA MARQUES GASTÃO(n. 1962)




Saturday, November 13, 2004

JUAN RAMÓN JIMÉNEZ



Todas as rosas são a mesma rosa,
amor!, a única rosa;
e tudo está contido nela,
breve imagem do mundo,
amor!, a única rosa.



Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.



Que acontece a uma música,
quando deixa de soar;
e a uma brisa que deixa
de voar,
e a uma luz que se apaga?
Morte, diz: que és tu, senão silêncio,
calma e sombra?



A solidão era eterna
e o silêncio inacabável.
Detive-me com uma árvore
e ouvi falar as árvores.



Quando eu estiver com as raízes
chama-me com tua voz.
Irá parecer-me que entra
a tremer a luz do sol.


JUAN RAMÓN JIMÉNEZ (1881-1959)

Prémio Nobel da Literatura 1956


Friday, November 12, 2004

ALMEIDA GARRETT




Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
- Não, ai, não! falta-me a vida,
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor!

Dói-me a alma, sim, e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida ou a razão.



ROSA PÁLIDA

Rosa pálida, em meu seio
Vem querida, sem receio
esconder a aflita cor.
Ai! a minha pobre rosa!
Cuida que é menos formosa
Porque desbotou de amor.

Pois sim... quando livre, ao vento,
Solta da alma e pensamento,
Forte de sua isenção.
Tinhas na folha incendiada
O sangue, o calor e a vida
Que ora tens no coração.

Mas não era, não, mais bela,
Coitada, coitada dela,
A minha rosa gentil!
Curvavam-na então desejos,
Desmaiam-na agora os beijos...
Vales mais mil vezes, mil.

Inveja das outras flores!
Inveja de quê, amores?
Tu, que vieste dos céus,
Comparar tua beleza
Às folhas da natureza!
Rosa, não tentes a Deus.

É vergonha... de quê, vida?
Vergonha de ser querida,
Vergonha de ser feliz!
Porquê? Porquê em teu semblante
A pálida cor da amante
A minha ventura diz?

Pois, quando eras tão vermelha
Não vinha zangão e abelha
Em torno de ti zumbir?
Não ouvias entre as flores
Histórias de mil amores
Que não tinhas, repetir?

Que hão-de eles dizer agora?
Que pendente e de quem chora
É o teu lânguido olhar?
Que a tez fina e delicada
Foi de ser muito beijada,
Que te veio a desbotar?

deixa-os: pálida ou corada,
Que isenta ou namorada,
Que brilhe no prado flor,
Que fulja no céu estrela,
Ainda é ditosa e bela
Se lhe dão só um amor.


ALMEIDA GARRETT (1799-1854)

Wednesday, November 10, 2004

CECÍLIA MEIRELES

Nesse lugar nos encontraremos, Poeta...



Nesse lugar certamente nos encontraremos, Poeta.

Só pode haver um lugar
e o mesmo
para os que andaram na vida à procura
do que não se encontrava.
E será o nosso.

(Mas veremos de lá todas aquelas coisas já vistas?
Aquelas mesmas pessoas avistaremos,
nos seus antigos caminhos?
Teremos de ouvir para sempre o que diziam,
- oh, o movimento dos lábios que mentem,
a inesquecível pupila traiçoeira,
a lâmina que os malvados levam no pensamento...)

Teremos no outro mundo
a melancólica lembrança
do que nos vai matando neste?

Poeta, certamente nos encontraremos nesse lugar.

E que sejamos apenas a humilde, a humilhada luz,
que tanto defenderemos
desse vento, dessa noite, desse peso brutal do mundo em que vivemos.
Ai!



Escreverás meu nome com todas as letras,
Com todas as datas
- e não serei eu.

Repetirás o que me ouviste,
O que leste de mim, e mostrarás meu retrato
- e nada disso serei eu.

(...)

Somos uma difícil unidade
De muitos instantes mínimos
- isso seria eu.

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
Aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente
- Como me poderão encontrar?

Novos e antigos todos os dias,
Transparentes e opacos, segundo o giro da luz
- nós mesmos nos procuramos.

E por entre as circunstâncias fluímos,
Leves e livres como a cascata pelas pedras.
- Que metal nos poderia prender?





E assim passamos a tarde
conversando coisas banais
da superfície do mundo.

E estamos cheios de mistérios
que não comunicamos.

E assim morreremos, decerto.
E não dais por isso.



Para longe o que calo:
para o único momento
que se há-de ver imenso.

Para longe o que calo:
para o único momento
que se há de ver imenso.

Entre o que falo e calo,
há um leque em movimento.
Mas eu, a quem pertenço?



É preciso não esquecer nada;
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso esquecer é o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fossemos,
vigiados pelos nossos próprios olhos
severos connosco, pois o resto não nos pertence.




Dize:
O vento do meu espírito
soprou sobre a vida.
E tudo que era efémero
se desfez.
E ficaste só tu, que és eterno...



Não busques para lá.
O que é, és tu.
Está em ti.
Em tudo.
A gota esteve na nuvem.
Na seiva.
No sangue.
Na terra.
E no rio que se abriu no mar.
E no mar que se coalhou em mundo.
Tu tiveste um destino assim .
Procura o mar.
Dá-te à sede das praias
Dá-te à boca azul do céu
Mas foge de novo à terra.
Mas não toques nas estrelas.
Volve de novo a ti.
Retoma-te.


CECÍLIA MEIRELES (1901-1964)

Thursday, November 04, 2004

MARIANA INVERNO


terra primordial tellus mater
submissa matriz
ao princípio activo dos céus

terra virgem um dia
atravessada pelas lâminas
do nosso aviltamento
abóbada sepulcro
firme e duradoura
coagulada por antigos heróis míticos
separada das águas
antes dos tempos contados

o cosmos chora por ti

rasgado nos espaços sem fim
o olho do coração universal
deixa escorrer
acabada meteórica
gigantesca gota de âmbar

choupos tremulam nas ladeiras húmidas
choram os ventos crescente ladainha
anunciadora de mudança
haverá talvez cinzas e fogo
vagas sombrias altaneiras
redes de morte abrangentes
e um estertor ressonante
como os ecos ancestrais
que nos acossam no delírio

terra mãe terra
chora por ti
o coração cósmico e nele o meu
perdoa os interlúdios de dor
a alienada batida da vida ora manifesta
nos teus solos nas águas infestadas
e pelos ares (outrora subtis livres)
essa célere via entre ti e os céus

terra mãe terra
o cosmos chora por ti


MARIANA INVERNO (n.1950)
Foto: José M. F. Coutinho

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