O POEMÁRIO DE MARIANA

A poesia é a expressão verbal correspondente a uma percepção de vida subtil e pluridimensional.Instrumento expansivo de consciência, a poesia corresponde ao sentir, expresso no verbo sem as amarras da mente racional. Relembra algo que nos falta e que frequentemente não sabemos apontar e repõe a complexa beleza da manifestação...
MARIANA INVERNO

Wednesday, March 08, 2006

S O Y A



A COR DA TUA FACE

A minha almofadinha tem milhares de cores
Aquela por baixo do peito multifacetada
Que ao rodopiar funde boas e más dores
Num todo cooperante, mulher equilibrada

Cada qual um espaço na almofadinha por colorir
A oportunidade do desconhecido fazer sentir
A tua cor já neutralizada não pelo que me fizeste
Mas pelo teu pobre pincel e face insignificante

O tempo conta, e começa na verdade
Para aqueles de individual consciência saudável
Vi as agulhas perfurarem em clara liberdade
Trazendo mágoa e rancor à almofadinha moldável

Quando a lágrimas é comprida a sorte
Vão as agulhas, factos ou lembranças integrais
Fica a impressão profunda que exclui a tua face
Só a sabedoria e análises imparciais

Processo irreversivelmente dogmático
A inculta e fria marca na almofadinha
Impedimento à cor e ao formato
Sentimento superior à tua falta de tinta


Soya
2006



A TERRA E O MAR

Que sinto
Mornice, meiguice
Sol fresquinho, vento quentinho

Da segurança nasce o erro
A vontade livre pela descontracção
E assim se concretiza o apelo
Feito pelo navegante muito sabido então

Sinto o amado para lá da distância que separa a légua
Sete fogos extintos por uma só lágrima
Com os dedos a bailar nas cordas criativas longe da terra
Medida ceifada na escorregadia invisibilidade

Morrer aos pouquinhos
Dia sim, dia não
Devagar devagarzinho
Sem contrariar o coração

Voaram as respostas na terra
Do pior, ele a bailar contra mim e para todo o mar
Foram refutadas por questões nas minhas mãos
Os lábios revelavam mais nada a achar

Pensar não faz mal?
Toca de cima para baixo
Mas até que ponto trás isso mal?
Quando lá chego
Fico com mais flores no meu quintal

No caminho de pedra para beijar a felicidade
Dividiria o trevo de quatro folhas, em dois meios de duas
Pontas separadas entre a terra e o mar já hoje
Medida irracional e doente de te ver longe

Sei que o desfeito
Está mais perto do perfeito
Com o meu e da Lua apoio
Só eu influencio meu peito

De amores platónicos já me basta
E de todas as frases doentes
Passo a seguir a rebaixante vontade descontente
De, neste momento, dizer adeus para sempre



GOTAS DE CHUVA

Olho para a janela e está a chover, olho para dentro e está tudo igualmente molhado
Esquecer as regras, usar a altura de começar a aperceber, através de uma janela

Estou a vê-las cair, escorregar, a descer naturalmente
Os segundos passam e o tempo passa
E lá vão elas a esgotar o tempo da sua existência

Nascem algures no acaso
Pouco controlam o momento da sua acção
Até que desaparecem
Quando já outras nascem e outras vão a meio trajecto

Enquanto o momento de cada uma passa vão ziguezagueando
Ora para a esquerda, ora para a direita
Ora para o cume, ora para o vale
Ora para o mar, ora para a terra
Ora para o seguro, ora para o inseguro
Ora para o preto, ora para o branco

Passadas vidas, as vidas vão encontrando das outras os refugos
Que se vão aglutinando em novos caminhos
E influenciando suas pegadas em cada novo segundo

E enquanto isto, já tudo se passou
Passou a chuva lá de fora e também a cá de dentro
Agora a visão foi para outro universo, outro espaço
Mas há-de voltar, e eu hei de sentir
Até que eu também acabe as minhas curvas

Soya
2004



OS TRATANTES DA VERDADE

Os olhos reflectem um mundo em volta
Imagens hereges em vidros aos estilhaços
A dispersão numa primeira respiração morta
Bocas grandes, tratantes do humano feito palhaço

O lamento da nossa fé no acaso
Contra o silêncio e a escuridão
O indizível conhecimento ao abandono
Reflexão aterrorizada nas provas em vão

O teatro cria a vertigem do irreal em real
Um vigilante esconderijo que nunca foi estanque
A vida infiltra-se e argumenta uma reacção natural
O impotente sonho de ser, tudo menos cooperante

A dor que desapetece quando desapetecida
As lágrimas que trazem um oceano em imensidão
Mar a dentro surge uma consciência tranquila
O toque saudável sem desejo de exposição

Um sorriso manchado em lágrimas
Vontade na tolerância de beijar as feridas
Ou fechar dentro ou fora das intenções amigas
A sabedoria que ouve o acaso e escolhe as páginas


Soya (n.1989)
2006

Friday, March 03, 2006

ROBERTO JUARROZ - Poesia Vertical



A experiência poética de um pensador místico e visionário

TENSÃO INTERIOR
VERTICALIDADE
ALQUIMIA INTERIOR
INTEGRIDADE



Há pensamentos que deveriam culminar
num gesto da sua própria substância,
conciliações, mortes e até esquecimentos
que artificialmente devem ser detidos
numa paralisada iminência,
num embrião ou anteprojecto de gesto
imobilizado de súbito como um rígido boneco
no interior de uma parede de vidro.
E não se sabe se ali termina o homem,
nesse falso vazio transparente,
ou se o gesto necessário não se cumpre
porque em frente já não há ninguém.
O certo é que o mundo
não é mais que um montão de extremos incompletos,
de pontas frustradas
no escandaloso e simulado espaço
dos gestos que não existem.
E a morte não é outra coisa que a plenitude desse espaço,
a fusão desses gestos.



A iniciativa própria das coisas,
a sua ruptura com antigas servidões,
a razão inconclusa de ser coisas,
fazem com que de repente não o sejam.
Passam assim a existir num outro plano,
a articular os signos de uma linguagem
ou a firmar a presença de outro espaço,
a percorrer as formas do vivo,
não somente a reflecti-las,
a corrigir o seu sonho de ser coisas
e sonhar outro sonho,
como ser outra história da vida
ou outra história sagrada:
a de um deus que apoia o seu mutismo nas coisas.
Ou as coisas deixam às vezes de ser coisas
para aperfeiçoar por um instante
a inconsciência do mundo.



Há dias em que o ar não existe.
Mineiros da desolação,
respiramos então substâncias escondidas.
E a ponto de nos asfixiarmos,
vagamos com a boca aberta
e não acendemos nenhum fogo,
para não consumir o pouco oxigénio que nos resta
como um pedaço de pão do dia anterior.
Já não recordamos o nome da nossa rua,
nem a medida da nossa roupa,
nem o som da nossa voz,
nem a sensação do nosso corpo.
Porém de imediato,
como se também tivessem ficado sem ar,
esvaziam-se a um só tempo a memória e o esquecimento
e encontramos então
a mínima densidade possível,
as partículas sábias onde entram em contacto
o vazio e a vida.
E é ali, somente ali,
onde descobrimos a salvação pelo vazio.


ROBERTO JUARROZ, 1925-1995

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